Parece-me que paralelamente à decadência da vida religiosa o número de neuroses vai aumentando consideravelmente.
Entretanto, não há qualquer estatística que ateste este crescimento.
Mas uma coisa me parece certa: o estado de espírito geral do europeu mostra mais ou menos por toda parte uma ausência inquietante de equilíbrio.
Não se pode negar que vivemos em uma época de grande agitação, de nervosismo, de atividade mais ou menos desordenada e de notável desconcerto em tudo que se refere às concepções do mundo.
No seio de minha clientela que provém, sem nenhuma exceção, dos meios cultos, figura um número considerável de pessoas que me consultaram, não porque sofressem de uma neurose, mas porque não encontravam um sentido para suas vidas ou porque se torturavam com problemas para os quais a filosofia e a religião não traziam qualquer solução.
Alguns pensavam que eu talvez possuísse alguma fórmula mágica, mas tive prontamente de desenganá-los e dizer-lhes — e isto nos leva aos problemas práticos — que eu também não possuía qualquer resposta pronta.
Tomemos, por ex., a mais frequente e a mais comum destas questões — a do sentido da vida.
O homem moderno saber à saciedade o que o pastor vai responder a esta interrogação, e mesmo o que ele deve responder…
Do filósofo essas pessoas geralmente riem;
do médico de clínica geral não esperam muita coisa;
mas do especialista da alma, que passa seu tempo a analisar o inconsciente, quem sabe, afinal de contas, ele não terá alguma coisa para dizer?
Talvez se possa esperar que ele tenha desenterrado dos subterrâneos obscuros da alma, entre outras coisas, também um sentido para a vida, que poderíamos adquirir barato, em troca do pagamento dos honorários.
Por isso, constitui quase um alívio da consciência para qualquer pessoa séria saber que o próprio médico nada tem a dizer, a priori, sobre o assunto.
E assim a pessoa se consola, sabendo que não errou o alvo que estava a seu alcance.
É muitas vezes por meio deste contato que se abre o caminho da confiança em relação ao médico.
Descobri que há no homem moderno uma resistência invencível contra as opiniões pré-fabricadas e as verdades tradicionais que se pretende impor.
O homem moderno é como um bolchevista para o qual todas as formas e normas espirituais anteriores perderam de algum modo a validez, e assim ele quer experimentar com o espírito o que o bolchevista faz com a economia.
Em face desta tendência do espírito moderno, qualquer sistema da igreja católica ou protestante, budista ou confucionista, se acha numa situação incômoda.
É inegável que entre os modernos existem naturezas destruidoras, perversas, tipos originais degenerados, desequilibrados, que não se sentem bem em parte alguma e que, por conseguinte, aderem a todos os novos experimentos e a todos os movimentos — aliás com grande dano para estes últimos — na esperança de descobrir aí, enfim, aquilo que possa atenuar as suas próprias deficiências.
Evidentemente, por força de minha profissão conheço um grande número de pessoas de nossa época e, consequentemente, também os sujeitos patológicos, assim como os normais. Mas façamos abstração dos sujeitos patológicos.
Os indivíduos normais não são tipos originais doentios, mas muitas vezes homens particularmente capazes, bons e corajosos; entretanto, não é por maldade que rejeitam as verdades tradicionais, e sim por motivos de correção e de honestidade.
Eles sentem globalmente que nossas verdades religiosas se tornaram, de alguma forma, ocas e vazias. Ou não conseguem harmonizar sua concepção das coisas com as verdades religiosas, ou então sentem que as verdades cristãs perderam sua autoridade e justificação psicológica.
As pessoas não se sentem mais salvas pela morte de Cristo e não conseguem mais crer.
Feliz, por certo, é aquele que pode crer em alguma coisa, mas não se pode obter a fé pala força. O pecado é qualquer coisa inteiramente relativa; o que é mau para um é bom para o outro.
Por que Buda não teria tanta razão quanto Cristo?
Creio que todos aqui conhecem estas questões e dúvidas tanto quanto eu.
A análise freudiana coloca todas estas coisas de lado, declarando-as impróprias, porque na sua opinião trata-se, quanto ao essencial, de recalques da sexualidade, fatos encobertos por pretensos problemas filosóficos e religiosos.
Quando se estuda, em sua realidade, um caso individual em que surgem problemas desta natureza, logo se constata, efetivamente, que o domínio sexual se acha perturbado de maneira muito singular, de modo geral, a esfera inteira dos instintos inconscientes.
Freud explica toda desordem psíquica, partindo da existência dessa desordem sexual, e se interessa unicamente pela causalidade dos sintomas psíquico-sexuais.
Assim procedendo, ignora completamente que existem casos em que as pretensas causas estavam presentes desde há muito, mas não se manifestavam, até que alguma perturbação da atitude consciente fizesse o indivíduo soçobrar na neurose.
Este procedimento é semelhante ao que aconteceria se, num barco que fosse a psique, por ter-se aberto um rombo no seu casco, a tripulação se interessasse essencialmente pela composição da água que irrompesse no casco, ao invés de esforçar-se por tapar o buraco.
A perturbação da esfera sexual não é um fenômeno primário, mas constitui, como tal, um fenômeno secundário.
A consciência perdeu seu sentido e sua esperança.
Tudo se passa como se um pânico tivesse irrompido (“comamos e bebamos porque amanhã estaremos mortos”).
Este estado de alma, nascido em seres que perderam o sentido de sua existência, determina a perturbação do mundo subterrâneo e desencadeia os instintos domesticados a duras penas.
O motivo pelo qual alguém se torna neurótico está tanto no presente como no passado. Só um motivo atualmente existente pode manter viva uma neurose.
Uma tuberculose existe hoje, não porque há vinte anos houve uma infecção de bacilos tuberculosos, mas porque o sujeito apresenta, no momento, focos bacilares em rápido desenvolvimento.
Onde e como teve lugar a infecção é de todo secundário.
Mesmo o mais exato conhecimento dos antecedentes do enfermo não o curaria da tuberculose.
A mesma coisa acontece com a neurose.
É por esta razão que sempre levo a sério os problemas religiosos que um paciente me submeta, e os considero como causas possíveis de uma neurose.
Mas se os levo a sério, devo confessar a meu paciente:
“Sim, você tem razão; pode-se sentir as coisas como você o faz; Buda pode ter tanta razão quanto Cristo; o pecado é relativo, e não se vê realmente como e por que motivo deveríamos sentir-nos salvos pela morte de Cristo”.
Confirmar o doente nestas suas dúvidas é certamente multo fácil para mim, enquanto médico, mas é difícil para o pastor.
O paciente percebe a atitude do médico como resultante de uma compreensão, ao passo que tomará as hesitações do pastor como o reflexo de um aprisionamento deste na história ou na tradição — atitude que o separaria humanamente do enfermo.
E o paciente pensa consigo mesmo:
Se assim é, o que acontecerá e o que irá dizer o pastor quando eu começar a falar-lhe de todas aquelas coisas que perturbam minha vida instintiva?
Com toda razão o paciente esperará que o pastor esteja muito mais preso ainda aos seus conceitos morais, do que os seus pontos de vista dogmáticos.
Podemos lembrar neste contexto a anedota deliciosa que se conta a respeito do lacônico Presidente Coolidge.
Num domingo pela manhã ele saiu e ao retomar sua mulher lhe perguntou:
“Onde estiveste?”
“Na Igreja!”
“E o que disse o pastor?”
“Falou do pecado”.
“E o que disse ele sobre o pecado?”
“Ele foi contra”.
Dir-me-ão que o médico, nesta perspectiva, pode facilmente ser compreensivo.
Mas nós nos esquecemos de que entre os médicos também existem naturezas morais e que entre as confissões dos pacientes há algumas que o médico também tem certa dificuldade em digerir.
E, no entanto, o interlocutor não se sentirá aceito enquanto não for admitido aquilo que há de mais sombrio nele.
Ora, nessa aceitação não se trata apenas de palavras, e a ela se pode chegar em função da mentalidade de cada um e da atitude que se adota no confronto consigo próprio e com seu lado sombrio.
Se o médico quer conduzir a alma de alguém, ou mesmo somente acompanhá-la, é preciso, pelo menos, que esteja em contato com ela.
Este contato, entretanto, não se estabelecerá enquanto o médico mantiver uma atitude de condenação no que diz respeito à pessoa que lhe foi confiada.
Que nada diga acerca desta condenação ou que a exprima mais ou menos claramente, isto em nada altera as consequências produzidas por sua atitude no paciente.
Mas também não adianta assumir a atitude inversa e dar sempre razão ao paciente, em qualquer circunstância. Este procedimento determinará o mesmo alheamento que uma condenação moral.
O contato, com efeito, só se estabelece graças a uma objetividade isenta de qualquer preconceito.
Esta afirmação tem um aspecto quase científico. Alguém poderia confundir o meu pensamento com uma atitude puramente abstrata e intelectual.
Ora, o que aqui estou dizendo é algo de inteiramente diverso: trata-se de uma atitude humana profundamente respeitosa em relação ao fato, em relação ao homem que sofre esse fato e em relação ao enigma que a vida desse homem implica.
O homem verdadeiramente religioso assume precisamente tal atitude.
Ele sabe que Deus criou todas as espécies de estranhezas e coisas incompreensíveis, e que procurará atingir o coração humano pelos caminhos mais obscuros possíveis.
É por isso que a alma religiosa sente a presença obscura da vontade divina em todas as coisas.
É esta atitude que pretendo designar quando falo de “objetividade isenta de qualquer preconceito”.
Ela constitui o desempenho moral do médico, o qual não deve sentir repugnância pela enfermidade e pela podridão.
Não se pode mudar aquilo que interiormente não se aceitou.
A condenação moral não liberta; ela oprime e sufoca.
A partir do momento em que condeno alguém, não sou seu amigo e não compartilho de seus sofrimentos; sou o seu opressor.
Isto não quer dizer, evidentemente, que nunca se deva condenar alguém.
Mas não se deve condenar ali onde se espera e se pode ajudar alguém a melhorar sem recorrer a essa condenação.
Se um médico quer ajudar um homem, deve primeiramente aceitá-lo tal como é. E não poderá fazer isso enquanto não se aceitar a si mesmo previamente, tal como é, em seu ser, com todas as suas falhas.
Isto talvez pareça muito simples. Mas o que é simples em geral é sempre o mais difícil.
De fato, a simplicidade constitui a arte suprema e assim a aceitação de si mesmo é a essência do problema moral e o centro de toda uma concepção do mundo.
Que eu faça um mendigo sentar-se à minha mesa, que eu perdoe àquele que me ofende e me esforce por amar, inclusive o meu inimigo, em nome de Cristo, tudo isto, naturalmente, não deixa de ser uma grande virtude.
O que faço ao menor dos meus irmãos é ao próprio Cristo que faço.
Mas o que acontecerá, se descubro, porventura, que o menor, o mais miserável de todos, o mais pobre dos mendigos, o mais insolente dos meus caluniadores, o meu inimigo, reside dentro de mim, sou eu mesmo, e precisa da esmola da minha bondade, o que eu mesmo sou o inimigo que é necessário amar?
Assistimos aqui a uma inversão total da verdade cristã, pois já não temos mais amor nem paciência e somos nós próprios a dizer ao irmão que está dentro de nós:
“Raca!” [louco], condenando-nos, dessa forma, a nós próprios e irando-nos contra nós mesmos.
Exteriormente, dissimulamos aquilo de que somos feitos o negamos categoricamente haver encontrado à nossa frente esse miserável que habita dentro de nós, e mesmo que o próprio Deus tivesse se aproximado de nós, oculto sob estes traços repugnantes, nós o teríamos rejeitado milhares de vezes, muito antes que o galo cantasse.
JUNG, Carl Gustav. CW 11, Psicologia e Religião: Ocidental e Oriental, Capítulo V, pag. 337-341.