Como são os ritos nos dias atuais?
Ultimamente tem me chamado à atenção a falta de um marco para as inúmeras transições que todos nós fazemos durante a vida. Antigamente, esses momentos de transição eram marcados pelos ritos (rituais); hoje, esses momentos ou não estão sendo vivenciados ou não estão tendo relevância na vida das pessoas.
Um número considerável de clientes tem ido até o consultório reclamar sobre uma falta de sentido e se queixam de se sentirem desencaixados no momento em que estão vivendo. Dando alguns exemplos, é como se, mesmo estando na idade adulta, a pessoa ainda esteja presa aos moldes de quando estava amadurecendo.
Ou então um jovem adulto que não se sente pronto para ir para a vida pois de fato não se reconhece nesta fase: ainda se sente como adolescente, vivendo dia após dia, sem muitos planos e nada de segurança.
O rito ao longo dos tempos
Antigamente, as pessoas contavam com a ajuda de ritos para simbolizarem uma mudança de fase; cada tribo ou família tinha seus meios próprios de iniciarem seus filhos conforme a vida ia se apresentando. Esses ritos eram feitos em todos os momentos de vida em que uma transição psíquica tinha de ser realizada, como nos marcos mais tradicionais: iniciação à puberdade, casamento, nascimentos e mortes. Com o tempo, os ritos foram atualizados e explorados culturalmente: a menina que fazia 15 anos tinha uma festa para ser apresentada à sociedade; o primeiro emprego era a porta necessária para entrar em uma vida adulta, etc., entre tantos outros exemplos que podemos dar.
Os ritos nos dias atuais e a relação do indivíduo com as etapas da vida
Infelizmente, nas sociedades atuais, os ritos foram sendo deixados de lado em troca de simples comemorações-espetáculo ou então caíram completamente no esquecimento. Os momentos de transição continuam acontecendo nas nossas vidas, mas não se tem dado a devida importância e atenção à essas fases; principalmente os jovens – e claro, muitos adultos – , não estão conseguindo simbolizar essas etapas conquistadas, ou seja, estão perdendo o sentido de cada acontecimento.
O livro “Sob a sombra de saturno – a ferida e a cura dos homens”, do Jamis Hollis trata sobre o assunto de forma brilhante. Apesar do foco ser o masculino (o que é bárbaro uma vez que quando ressaltamos alguma transição focamos nos temas mais conhecidos do feminino – mudanças no corpo, casamento, maternidade, etc.), fica evidente como as pessoas estão carentes desses ritos – e como isto está impactando a vida das pessoas.
“Esses ritos envolvem não apenas a transição das dependências da infância para a auto-suficiência da idade adulta, como também a transmissão de valores, como a qualidade e o caráter da cidadania, e as atitudes e as crenças que ligam a pessoa aos seus deuses, à sociedade e a si mesma.” (HOLLIS, 2008)
Os ritos têm um caráter de iniciação e normalmente é passado ou ensinado por alguém mais velho, capaz de dar o aval para a pessoa entrar neste ‘novo mundo’. Apesar dos medos naturais de se entrar em uma nova fase sem ter um preparo para isto, quando se tem uma pessoa mais experiente – e aqui podemos resgatar a imagem de um velho(a) sábio – direcionando este processo, desperta uma confiança interna de que poderá recorrer a ele quando precisar.
Esta pessoa que dá a iniciação se torna uma testemunha deste momento. Assim como o rito era esperado, passar por ele, encarar as dores desta transição vinha acompanhado de um certo orgulho por ter chegado a sua hora; por ter mudado de fase.
Este sentido, agora perdido, faz com que as pessoas não só estejam despreparadas para as mudanças de fase como também estejam mais resistentes a qualquer tipo de dor, desafio, desconforto. É como se quisessem ficar protegidos em um local que já não está mais fazendo bem mas ao menos é conhecido – ou seja, os riscos falsamente são minimizados.
Infelizmente as pessoas não estão se entregando para a vida a partir do momento em que decidem evitar qualquer tipo de mudança; assim, mesmo aquilo que acontece naturalmente conforme vamos crescendo não é preenchido com nenhum significado:
”(…) a ideia da passagem é essencial, pois todas as passagens implicam o fim de algo, algum tipo de morte, e o início de algo, algum tipo de nascimento. Somente a morte é estática; o princípio da vida é a mudança, e temos de passar por muitas mortes e renascimentos para levarmos uma vida significativa. ” (HOLLIS, A passagem do meio, 1995)
A importância de se resgatar e atualizar os ritos
No processo de autoconhecimento, na evolução da vida, é extremamente útil o ato de se confrontar, olhar para a sua zona de desconforto e assim elaborar todos os pontos – sejam eles negativos ou positivos – em busca de se conhecer em uma totalidade. Talvez se resgatássemos alguns ritos, muitas das questões conflituosas seriam trabalhadas no momento em que elas apareceriam, sendo simbolizadas e trazendo algum significado para a vida de cada um. Todo este processo de crescimento, confronto e conquista dão sentido para a vida e preenchem a personalidade e segurança de cada um. É onde o ego vai sendo trabalhado e amadurecido.
“Ao rito como continente psíquico são atribuídas duas funções específicas: a) a função de passagem; b) a função da transformação. Na primeira e na segunda acepção o rito entende-se como a constituição de um limiar ou de um confim que liga e ao mesmo tempo distingue o passado e o futuro, ou o sentido coletivo e o individual do mesmo sujeito, isto é, ele estará em grau de transpor um limiar à medida que está em grau de configurar a possibilidade de que elementos diferentes ou opostos venham, de um lado, a coincidir, e do outro a distinguir-se verdadeiramente” (PIERI, 2002)
Assim sinto que cada vez mais, o resgate dos ritos se faz necessário. Não apenas como um recurso ou protocolo, mas principalmente na vivência e valorização das mudanças e etapas de vida. Esta mudança de olhar contribuiria para que os obstáculos fossem encarados como algo positivo e enriquecedor ao invés de serem taxados como nocivos e assustadores.
Passar pelas provas da vida é uma tarefa para o nosso herói interno; mas esta oportunidade está sendo blindada pela falta de prontidão, medo de não dar conta, receio de vivenciar o novo e desconhecido. Jung fala sobre o perigo de esquecer as tradições como uma ferida à alma:
“A dissolução de uma tradição, por mais necessária que seja em certas épocas, é sempre uma perda e um perigo; um perigo para a alma porque a vida instintiva – como o que há de mais conservador no homem – se exprime justamente pelos hábitos tradicionais. ” (JUNG, 2012)
Afinal, como dizia Jung, a vida começa sempre e de novo. São os ciclos que nos levam adiante. Saibamos respeitá-los. Vivenciar cada etapa da vida, enfrentar o novo faz parte da vida e do crescimento. Este é o sentido da vida.
Referências
HOLLIS, J. (1995). A passagem do meio. São Paulo: Paulus.
HOLLIS, J. (2008). Sob a sombra de saturno: a ferida e a cura dos homens (3ª ed.). São Paulo: Paulus.
JUNG, C. (2012). A prática da psicoterapia (15 ed., Vol. 16/1). Petrópolis: Vozes.
PIERI, P. F. (2002). Dicionário Junguiano. (I. STORNIOLO, Trad.) São Paulo: Paulus.
Olá. Sou professora de artes visuais e no ano de 2016, tendo percebido essa necessidade, realizei um ritual de passagem coletivo com os alunos do 9 ano do fundamental. E neste ano estou preparando as novas turmas para o rito deles. Gostaria de compartilhar essa experiência melhor e trocar informações. Tive a ideia de realizar um estudo de mestrado sobre o assunto e gostaria de ajuda, se possível.
Desde já agradeço imensamente o texto.
Quel Noz