Quem vem para a psicoterapia infantil?
Os pais são o primeiro mundo apresentado para a criança, por isso, o universo familiar é tão importante para o seu desenvolvimento. Fazem parte deste; o estado emocional dos pais, a forma como eles impõem limites, dão amor, acolhem, encaram o próprio corpo, a vida. A criança é alguém em desenvolvimento, é interessante que os pais possam se perguntar sobre que mundo estão apresentando aos seus filhos. Ela pode expressar pelos pais, sentimentos que os mesmos não tolerariam neles próprios.
Algumas vezes a criança pede ajuda, em outras, o desconforto aparece por meio dos pais. Em alguns casos, a criança consegue nomear o sintoma, em outros, um dos pais o nomeia. A “raiva em excesso” que uma criança manifesta, demonstra algo com o qual ela não sabe lidar, um conflito ou desconforto em seu desenvolvimento. Esse pode surgir a partir de sua interação no mundo, como também pode manifestar algo vivido na família.
Em outros casos, o pedido vem por uma demanda dos pais, um desejo dos pais em entender alguns comportamentos da criança. Em ambos, pais e filhos podem estar em sofrimento. É importante que o psicoterapeuta avalie o que o sintoma está denunciando. Algumas vezes, quem precisa de terapia é o casal, um dos pais, a família e em outras a criança.
Como realizar um processo psicoterapêutico infantil considerando a psique individual da criança, do sujeito que esta se constituindo, e também a coletiva, familiar, peça fundamental nessa constituição?
Criar e recriar-se
Na psicoterapia infantil é importante que se crie um espaço em que seja possível observar os movimentos da criança com seus pais, o que é recorrente no espaço lúdico e o que pode variar. Observar como os pais se manifestam, se relacionam com a criança, o lugar que ela ocupa na vida deles, investigar as relações na escola e fora do âmbito familiar, criando caminhos para que seja possível compreender o sintoma.
A imaginação e fantasia da criança tem uma grande força em sua psique, são seus recursos de expressão e ressignificação. Através da brincadeira, do universo lúdico, a criança vai apresentando informações sobre sua história, sobre como se sente, que lugar ela ocupa na vida e também as suas tentativas de elaborar o que é conflituoso. A partir dessa observação é possível fazer um trabalho de intervenção, mergulhando nesse espaço simbólico para agir sobre a realidade.
A expressão artística é um meio de observar e ampliar o processo de simbolização. Através dela, cria-se também a dinâmica entre o sintoma e a realidade. Além de um diagnóstico, essa possibilita o criar que dá para a criança um movimento de relação com o conflito e um possível desenvolvimento.
Alba Fresler lembra Lacan (1962) ao citar que o primeiro jogo da criança é o desmamar-se. Se prestarmos atenção perceberemos que o bebê se coloca no mundo ao mamar, demonstra sua vida, não é apenas um eu que existe, ele age durante o mamar. Apesar de ainda viver através de uma relação de dependência, no mamar o bebê apresenta o seu desejo, o que o introduz como sujeito, com vida própria. A relação do bebê com o peito apresenta uma tomada de decisão dele, nesse sentido, vale observar a resposta que esse sujeito vai dar à mãe que o amamenta. Fresler (2007) cita que a demanda da mãe nem sempre é a do bebê. Quando se nega o desejo dele também se nega a afirmação de sua existência. A criança que não está sendo vista como sujeito, toma madeira só porque a mãe está oferecendo, acaba vomitando ou não reconhecendo a sua própria saciedade.
A psicoterapia tem como um dos objetivos oferecer recursos para que a criança se perceba e seja reconhecida pelos pais como indivíduo, ou seja, dar espaço para que ela reconheça o próprio desejo e se desenvolva como sujeito. Chamar os pais para a sessão nos permite intervir para quebrar as resistências que impedem o desenvolvimento da criança. Através deles podemos agir para dar lugar ao sujeito, à criança. A percepção da relação transferencial e contra-transferencial entre todos os envolvidos na psicoterapia da criança é fundamental para que esse trabalho seja realizado.
O bebê nasce de uma demanda dos pais, ele vem para ocupar um lugar, mas não consegue ocupá-lo, não se encaixa na demanda, o que gera um conflito inconsciente. Esse último e o jeito como os pais reagem a isso é o que vai dar lugar ao sujeito, a possibilidade da criança se desenvolver como indivíduo e se colocar a seu modo no mundo.
O brincar oferece à criança a possibilidade dela jogar, atuar a sua maneira. Ao brincar a criança pode: se identificar com a demanda, com os pais, criar um novo modo de se apresentar nessa dinâmica ou até repetir a forma como ela se apresenta. Por isso, esse lugar simbólico e o movimento que o brincar produz, auxilia no processo de elaboração, intervenção na psicoterapia e também do criar a si mesmo da criança. Dinamiza e põe em movimento a demanda dos pais e permite que se produza algo que dá abertura para a existência a criança como indivíduo.
Jogos, brincadeiras, brinquedos, desenhos são possibilidades para renovar a dinâmica da criança. Espera-se da psicoterapia que ela seja capaz de intervir em função do desenvolvimento da criança. Tanto o brincar, como as expressões criativas são capazes de criar um espaço simbólico que dá lugar para o sujeito se manifestar dentro de sua dinâmica e recriar-se ao ressignificá-la nas expressões e brincadeiras. Nesse sentido, considera-se que o setting terapêutico deve ser um ambiente em que sejam acolhidas as mais diversas experiências sentidas pela criança para que a experiência psicológica do novo possa ser vivida.
Em psicoterapia a arteterapia pode ser utilizada para facilitar o envolvimento do paciente com sua vida interna, seus sentimentos, emoções, memórias, histórias e afetos. Através de recursos artísticos e expressivos (tinta, argila, colagem, etc.) o inconsciente pode se apresentar e ganhar vida externa.
O Inconsciente de uma criança deve apresentar muito da dinâmica familiar que desperta os sintomas vividos, isso vai variar de acordo com a idade e o estágio de desenvolvimento da criança. Os materiais auxiliam na relação entre o que é verbalizado e o que não é, criam uma atmosfera simbólica e objetivam os símbolos. Há uma mobilização de energia da psique para que as imagens simbólicas sejam materializadas, o que inaugura uma nova porta entre consciente e o inconsciente.
Na relação dialética que acontece entre a matéria e o indivíduo, o momento criativo produzirá algo concreto que testemunhará o novo, o produto, a imagem concreta da emoção; a arte como testemunha do Si-mesmo. (GOUVÊA, 1989, p.60)
Ao brincar com uma criança, seja através de um brinquedo, de uma encenação ou de um material artístico, o psicoterapeuta deve ficar atento a sua postura. Muitas vezes, ao interpretar um desenho, uma brincadeira, uma atitude da criança, estaremos fechando as portas da elaboração, do novo sentido e do criar. É essencial intervir a fim de colaborar com a criatividade, ampliar as possibilidades do sujeito, deixar que ele dê sentido. Ao interpretar, o sentido é dado pelo outro, o que reduz a possibilidade do sujeito ressignificar, ou seja, o limita. Exigir traços perfeitos da criança manipula o desenho interno que pode vir a se manifestar. Também é possível ler um desenho sem dar um sentido fechado para ele. Perguntar o que a criança fez, olhar para o que foi feito, observar como foi feito (forma, velocidade, tempos), tendo em mente o sintoma, desenvolvimento da criança, dinâmica familiar, dá ao psicoterapeuta a oportunidade de olhar o que está dentro por fora e, em alguns casos, intervir. Assim, a criança pode se relacionar com os conteúdos inconscientes a partir da imagem que se forma.
Como escolher o brinquedo? Quais materiais utilizar? Para a criança o material é um terceiro, é algo mais com o que se relaciona, há uma relação transferencial entre criança e material. Isso é fundamental para que algo se crie e ela, como indivíduo, se desenvolva.
Podemos separar alguns brinquedos e materiais que acreditamos que podem fazer com que a criança se expresse, mas é também importante deixar a serviço da escolha consciente da criança, a qual também se baseia no inconsciente.
Um trabalho psicoterapêutico em que se dê credibilidade para a psique criadora considera as imagens dos processos inconscientes. Neste sentido, é importante que se ofereça um espaço continente para a exploração dos símbolos. Quando nós oferecemos objetos, criamos uma demanda para a criança e podemos observar como ela responde a essa demanda. Quando deixamos a escolha dela, nos torna possível observar como que ela se coloca em relação àqueles objetos.
Quando se trata de recursos artísticos, ampliamos ainda mais a possibilidade de lidar com o desconhecido, já que não é possível dar um sentido único para cada um, o inconsciente encontra espaço para se manifestar, existe um menor controle de demanda. Sabemos que nada é asséptico ao encontro analítico e determinados aspectos são importantes de serem observados.
Alguns recursos artísticos como a mistura de tintas, argila, aquarela, resgatam algo de primitivo, das origens e inconsciente, aparentemente de menor controle. Esses materias permitem “por a mão na massa”, movimento, flexibilidade, novas formas, contato com água, barro, o que pode favorecer tanto um movimento catártico, de expressão da dinâmica interna, como também de simbolização, recriativo, de algo novo que possa surgir e a partir daí se relacionar com a criança.
Trocando as lentes: ampliando a visão
A Arteterapia como possibilidade de agir no campo simbólico pode resignificar a vida, os acontecimentos, dar lugar ao sujeito que se apresenta nas expressões, na brincadeira, na imitação. Amplia também a possibilidade de acompanhar o desenvolvimento psicológico de uma criança e o olhar para a dinâmica familiar, a fim de favorecer o desenvolvimento da criança e a articulação com os sintomas.
Por fim, é comum agir diante das dificuldades e dar ênfase para as fragilidades, mas também é importante colocar os pais para refletir sobre as potencialidades dos filhos e o que da dificuldade deles próprios pode estar se manifestando na criança. Muitos filhos só conseguem o olhar dos pais pela “teimosia”, as vezes, ela é a única possibilidade que uma criança encontrou para se colocar, para apresentar o que ela é e a sua demanda ao mundo. Cada um tem o seu jeito de ser, a sua singularidade, encontrar as potencialidades também é uma forma de dar voz ao que pede para ser ouvido através dos sintomas.
REFERÊNCIAS
FLESLER, A. (2007). A psicanálise de crianças e o lugar dos pais. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
GOUVÊA, A. P. Sol da Terra: o uso do barro em psicoterapia. São Paulo: Summus, 1989.
JUNG, C. G. (1964). O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
________. (1935). A Prática da Psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 1981.
________. (1961). Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.