Quando olhamos para a mitologia grega e vemos a riqueza de descrições de situações vividas por um panteão de deuses, deusas, heróis e tantos outros personagens, vemos que há ali uma variedade infinda de ensinamentos em modos de funcionamento, que quando transpostos à dimensão humana, trazem consigo sabedorias preciosas. A Psicologia Analítica de Jung nos levou a compreensão e nomeação de algumas realidades que nos auxiliam a olhar a experiência humana de uma forma agregadora de consciência. Assim, a noção de arquétipo, por exemplo, constrói entre a vivência prosaica da banalidade do cotidiano e o mundo imaginário, o mundo das ideias, ou o mundo do pensamento, uma ponte que descortina um universo inteiro de possibilidades de apreensão das relações, do outro, dos significados.
Uma divindade mítica pode ser vista como uma expressão de uma realidade arquetípica. Quando examinamos de perto um mito, munidos de um olhar analítico e simbólico, podemos entender que há ali um caminho, uma forma particular de expressão que espelha uma possível forma de humanização daquela realidade. Se apurarmos o olhar e atentarmos para o que o mito nos traz de detalhes –que uma leitura mais apressada ou desinteressada pode tranquilamente deixar passar- será possível detectar mitologemas que se repetem, elementos assim ditos típicos, reveladores da essência daquele deus, ou deusa, e daquela história específica. Se continuamos nesse movimento pertinaz de aprofundamento vertical nas entrelinhas do relato mítico, vamos descobrindo, com o coração a palpitar, que existe ali um caminho apontando para o que na Psicologia Analítica se denomina o processo de individuação. Como nos sonhos, os símbolos estão todos ali colocados, e é o nosso olhar que deve ser treinado a enxergar o que já estava ali todo tempo; tal como ao entrarmos numa sala de projeção, onde nos primeiros instantes ficamos cegos com a escuridão. Mas se persistimos e esperamos alguns segundos, nossa visão vai aos poucos se adaptando e, em pouco tempo, somos capazes de ver com nitidez o que antes parecia-nos impossível.
Destino
Uma questão surge na mítica e é de nosso interesse explorá-la. Trata-se de uma indagação que remete à própria idade da consciência do homem, quando ele passa a refletir filosoficamente sobre sua existência. “Quem sou eu?”, pergunta-se, e “O que de fato cabe a mim decidir a respeito de meu destino?” “Existe um destino?” “O livre-arbítrio seria uma falácia, uma forma construída idealmente para aplacar a necessidade do homem em se sentir criador?” São questões sem respostas definitivas, e que nos lançam a fundar e crer em nosso próprio mito de criação.
Aqui cabe pousar os olhos na questão do livre-arbítrio dentro do âmbito da mitologia, na sua intersecção com a leitura simbólica, instrumento que a Psicologia Analítica nos legou. Esta traz em seu cerne a ideia de um centro organizador que contém uma intencionalidade. Há, portanto um destino. Mas não um destino único e decisivo, a quem devamos obedecer cegamente. A questão da cegueira é extremamente importante nessas inquietações. Pois que o bem maior do trabalho analítico está justamente na consciência e em sua ampliação.
Há muitos destinos possíveis se apresentando a todo instante, ininterruptamente para nós. Uma bela imagem desse fato, ou dessa ideia, como queiram, está mostrada no filme “Quem somos nós?” (What the bleep do we know?, documentário americano de 2005): Um menino está numa quadra de basquete e há muitas bolas pulando ao mesmo tempo, em diferentes alturas e velocidades; num determinado momento, ele escolhe uma delas. E assim, o livre-arbítrio se fez, a escolha se deu. Aquilo que acreditamos ser a única possibilidade, é apenas uma delas; mas a que escolhemos. Esse mesmo filme traz a reflexão sobre a possibilidade de mudarmos nosso futuro, mas também, o que considero ainda mais significativo para nosso universo “psi”, mudar o nosso passado. Ao olharmos as coisas de um ângulo diferente ao qual estamos habituados, até mesmo por influência de nossos sistemas químicos celulares condicionantes de padrões de funcionamento, podemos alterar o modo de compreensão daquilo que nos marcou no passado, bem como fazer novas e diferentes escolhas para o devir.
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Nas histórias da mitologia grega, a figura do oráculo e suas predições é corrente e constante. Se pensarmos haver na mítica caminhos de humanização do arquétipo apontando, no seu conjunto, para possíveis percursos de individuação, é decorrência quase instantânea a pergunta sobre o cumprimento ou não de um destino pré-estabelecido. Haveria livre-arbítrio no Olimpo? Seriam os deuses capazes de mudar os seus destinos? As determinações oraculares não teriam que ser sempre cumpridas pelos heróis, heroínas e divinos? Essa questão passaria por algum requisito? Somente numa dinâmica pós-patriarcal [1]estariam os personagens aptos a fazer escolhas conscientes?
No meu modo de entender, a questão traz uma complexidade maior do que aparenta. Se buscarmos exemplos de deuses e heróis em suas histórias registradas há milênios, veremos os oráculos se cumprindo sem exceção. Mas vemos também alguns personagens compreendendo os presságios e seus destinos de modos diferentes, com qualidades distintas de consciência. Descrevamos, então, um pouco mais a fundo, essas sutilezas:
Segundo Brandão (2001), a palavra grega moira provém do verbo meíresthai, que quer dizer “obter”, ou “ter em partilha”, e tem como sinônimo a palavra aîsa, da mesma família etimológica de aisymnân, cujo significado é “reinar sobre”, “ter o comando de”. É interessante pensar, que, desta forma, o destino se liga ao reinado. O que é dado, e o que eu comando, esse paradoxo encontra-se na raiz do termo grego para destino. Está também ali a personificação de uma Moira universal desdobrada em três figuras inflexíveis: Cloto, a que segura o fuso e fia o fio da vida, Láquesis, a que sorteia o nome de quem deve perecer, e Átropos, a que não volta atrás na sua função de cortar o fio.
Quando consideramos o destino como moira, significando, portanto, aquilo que nos é devido, o nosso quinhão, um paralelo é possível com a noção de individuação formulada por Jung. Trata-se de um processo, algo que se faz continuamente, na direção de ser o que se é. O nosso destino seria não outro do que concretizar aquilo a que viemos; fazer germinar o grão de que somos feitos. James Hillman trabalha belissimamente essa proposição em seu “Código do Ser”. Diferencia destino de fatalismo, este como uma generalização que exclui a reflexão. A moira não está em nossas mãos, mas ela é apenas uma parte. É preciso “captar as piscadelas marotas do destino” (HILLMAN, 1997, p.208), e este é um ato reflexivo.
Ao lado disso, temos a máxima bíblica de que o homem foi feito à semelhança de Deus. “À semelhança” não significa que sejamos iguais, é bom que se ressalte, mas simile, similar, que lembra. A maior de todas as hýbris humanas é justamente querer se equiparar – ou por vezes mesmo superar- ao próprio deus. É neste momento – revestido da inconsciência- que o destino se transmuta em maldição.
A Maldição em Édipo
O exemplo mais emblemático da mensagem oracular transformada em maldição – e depois retomada enquanto destino – está no mito de Édipo. Este herói ouve de um desconhecido ser ele filho adotivo, e vai até Delfos perguntar se essa informação procede. Em algumas versões encontramos que esse “desconhecido” seria o próprio servo de Laio, encarregado de expor a criança recém-nascida, e que num momento de embriaguez deixa o segredo da adoção vir à luz. É metáfora do elemento inconsciente que deseja vir à consciência e se aproveita do veículo dionisíaco da bebida para fazê-lo. O oráculo diz a Édipo que ele iria matar seu pai e casar-se com sua mãe. Não foi essa a resposta que ele queria ouvir, e também ela não respondia à sua questão. Ficou completamente atordoado com a revelação, de tal forma que perdeu completamente o contato com aquilo que lhe era mais particular e característico: seu pensamento lógico e límpido. Tem-se a impressão, pela atitude desesperada de Édipo – que desembocará na tragédia do assassinato de Laio – que ele foi pego em uma região psíquica bastante inconsciente e bruta, a ponto de causar-lhe um rebaixamento de consciência e nublar-lhe a capacidade reflexiva. Ainda sem saber se Pólibo e Mérope seriam seus pais adotivos ou legítimos, carregando assim, em direção a Tebas, a dúvida do “Conhece-te a ti mesmo” preconizado por Apolo, é vítima de uma armadilha do destino, se podemos brincar com as palavras aqui; é numa encruzilhada que o decifrador de enigmas, ainda obnubilado e convertido num impulsivo e intolerante, sela a previsão anunciada.
Sabe-se que a entrada de um novo símbolo na consciência atordoa e causa confusão. Édipo, naquele momento, estava em contato com o maior dos questionamentos do campo do humano: a sua identidade. Ela foi questionada, ao mesmo tempo que ele nunca se perguntou sobre seu corpo, sua aparência, seu defeito físico -tão comum e corrente entre crianças expostas. A sua compreensão de si mesmo tinha como via de acesso seu intelecto; somente ao final da vida, no ápice de sua tragédia, é que irá se contatar com o seu lado material.
Fica claro que a inconsciência é a grande vilã dessa história. Ela vem expressa pela visão nublada desse trecho de seu percurso –de Corinto a Tebas -, e depois se apresentará como a cegueira de Jocasta ao receber o filho de pés inchados sem reconhecê-lo, a insistência de Édipo em resistir às palavras sábias de Tirésias e por fim, na cegueira concreta no final do mito, que será, a meu ver, a sua redenção e possibilidade de saída da maldição. Vemos como, já nessas descrições é possível assinalar mitemas como a dificuldade de escuta e a cegueira, que se repetem ao longo do relato.
O grande tema da busca de si mesmo faz desse herói um marco e referência na história da consciência da humanidade. Mas é preciso que se veja o mito por inteiro. Ao se interromper a história nos castigos auto-imputados por Édipo e Jocasta, como faz a psicanálise, fica-se enredado na maldição.
A cegueira literal de Édipo abriu-lhe o caminho para a clarividência. Se antes não atentou para o oráculo, não deu ouvidos a Tirésias, não acurou o olhar para a encruzilhada em que se envolveu, agora terá que desenvolver seu tato e contar com a escuridão como guia. Essa é a condição para a sabedoria: Atravessar as sombras. Ao acompanharmos Édipo até o seu fim, vemos que mais do que simplesmente a maldição da morte anunciada se cumpriu. Com a visão voltada para dentro, nosso herói deixa-se guiar pelas mãos de Antígona, e escolhe o lugar de sua morte e sepultamento. Sabe de sua nova condição e se humaniza. O adulto puer intolerante e incapaz de olhar e considerar o outro, presa inconsciente da encruzilhada do destino, mostra-se transformado, encarnando uma figura de velho sábio. Ser consciente do vaticínio nos dá a condição de escolha, e nos faz sair da maldição. Na tragédia de Édipo isso só se deu depois dele se fazer cego concretamente, e poder passar a enxergar com os olhos da alma. Isso parece confirmar as palavras de Sêneca, de que é preciso conhecer a tragédia, para não ser a tragédia.
Além disso, é possível levar-se em conta que Édipo, ao aceitar o seu destino e deprimir frente à sua própria tragédia, entra em contato com sua função inferior[2], o sentimento, e deixa-se conduzir pela filha-irmã, uma figura de anima profunda, que traz a possibilidade de ligação com o masculino numa condição muito mais sofisticada do que a vivida na sua relação com a mãe-amante Jocasta. Sai do universo materno para adentrar no universo do par. Vemos, assim, a função inferior no seu importantíssimo papel como uma função oracular.
Se observarmos os heróis pós-patriarcais, como Cristo ou Buda, ou mesmo heróis que desenvolveram características pós-patriarcais em seus percursos, como Guilgamesh e Parsifal[3], notamos que também ali o destino foi cumprido. E qual é esse destino? Não é outro que não o de ser o que se é. Nos quatro exemplos levantados a consciência reflexiva foi elemento fundamental de compreensão da resposta ao enigma apolíneo “Conhece-te”: “que és uma pessoa humana” (Kerényi, 1995, p.20)
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Outro destino do humano, que se deslinda na tragédia Antígona de Sófocles – prosseguimento de Édipo Rei – é a possibilidade de voltar atrás, benefício que não é dado aos deuses. A meu ver, esse é um daqueles detalhes que muitas vezes nos passam desapercebidos, apesar de trazerem em seu bojo ouro puro. Voltar atrás, perceber-se enganado, dar-se conta tardiamente de um erro, de uma ignorância, e agir no sentido de ir em direção àquilo que deve ser feito, é também cumprir o destino de ser o que se é. Creonte seguiu tardiamente os conselhos de Corifeu e correu para soltar Antígona, após tê-la condenado à morte injustamente. Chega a dizer a Corifeu, ao dar-se conta do erro cometido: “Agora penso que é melhor chegar ao fim da vida obedecendo às leis inabaláveis” (SÓFOCLES, 2004, p. 249). Admite, assim, render-se ao destino; ao destino humano que pressupõe a escuta cuidadosa do que aí está, abrindo a porta de acesso à possibilidade de se rever, de retroagir, de repensar e recompor, de retomar enfim o caminho em direção à individuação. No seu caso, o adiamento e a demora tiveram consequências funestas, e o que se concretizou foi deveras a maldição.
Conclusão
Nos nossos consultórios, esse é o nosso exercício diário. Cabe a nós, analistas, muitas vezes funcionando como oráculos, vaticinar o caminho neurótico. Mas na condição de humanos que carregamos, podemos e devemos auxiliar aquele que nos procura com a angústia de um consulente de Delfos, a sair da maldição e transformá-la em destino, incluindo nesse âmbito o livre-arbítrio. Assim, se o oráculo revela uma verdade divina, ele sempre se cumpre, ou urge cumprir. No caso da inconsciência concorrer para esse caminho, ele se cumprirá tal qual uma maldição. Se pudermos desenvolver em nós a consciência reflexiva, ou como gosto de pensá-la, “hermética” -tal como o deus do movimento, capaz de unir os três mundos-, nós estaremos saindo da condição de vítimas do destino para cumprirmos não a maldição, mas o destino humano da individuação. O que nos capacita a fazê-lo de uma forma mais integrada e completa é, sem dúvida, um funcionamento psíquico dentro de uma dimensão pós-patriarcal, onde o outro – dentro e fora de mim – é visto, respeitado e acolhido como promotor de mudanças.
Voltando à imagem das muitas bolas de basquete pingando na quadra à nossa frente, é nosso destino eleger uma dentre tantas. Exercer o livre-arbítrio é pegar uma delas. Escolha a sua!
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Referências Bibliográficas
Brandão, J. Dicionário Mítico-Etimológico. Petrópolis: Vozes, 2001.
Hillman, J. Código do Ser. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.
Kerényi, K. & Hillman, J. Édipo e Variações. Petrópolis: Vozes, 1995.
Sófocles A Trilogia Tebana, Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
[1] Dinâmica pós-patriarcal é um modo de funcionamento da psique onde se ultrapassa a forma binária patriarcal de relação eu-outro, de características hierárquicas, para se adentrar num modo tridimensional onde o outro é parceiro e igual, e ambos se interdeterminam.
[2] C. G. Jung chamou atenção para diferentes tipos psicológicos constituídos por funções psíquicas e atitudes distintas. Para a descrição dos tipos, recomenda-se consultar o volume VI das Obras Completas, Tipos Psicológicos, Editora Vozes.
[3] Ver “O Arquétipo do caminho – Guilgamesh e Parsifal de mãos dadas”, Baptista, S.M.S., Amazon.