A Índia possui dois grandes épicos: o Ramāyana e o Māhabhārata. O segundo é mais conhecido devido à peça, que depois deu origem ao filme, de Peter Brook. É também conhecida a passagem referente ao Bhagavad Gita, o livro sagrado do Hinduismo. Pois bem, logo no início do Māhabhārata é contada a história do rei Uparicara, que, pensando em sua mulher, ejacula. Por estar longe de seu palácio, e desejar muito ter descendentes, envia seu esperma à rainha por intermédio de um falcão. Só que este pássaro é interceptado no meio do caminho por um outro falcão, com quem trava uma luta e o esperma acaba caindo num rio e fecundando um peixe. Nasce daí Satyavati, uma mulher muito bonita, mas com um cheiro tão forte de peixe, que os homens não conseguem se aproximar dela.
Satyavati passa a ser a condutora de uma balsa que fazia a ligação entre as duas margens de um rio. Um dia chega até ela um homem chamado Parâçara, um bardo, eremita andarilho e artista. Ele não apenas se casa com Satyavati, mas transforma o seu cheiro ruim de peixe em um perfume delicioso e inebriante. Além disso, a ela seria restaurada a virgindade quando desse à luz. O filho deste casal é Vyâsa, o poeta que conta a história do Māhabhārata.
Temos aqui alguns aspectos bastante interessantes para o tema que iremos desenvolver. Esta história começa com o devaneio de Uparicara, que produziu o esperma, e portanto, a fertilidade. Vemos, na imaginação, na fantasia, a manifestação espontânea da Psique, um produto natural, que emerge graças à coordenação daquele arquétipo que Jung denominou Self, e que Byington chama de Arquétipo Central. É a partir deste centro organizador que somos impulsionados a realizar nosso potencial como seres humanos ao estruturarmos e ampliarmos nossa Consciência através da elaboração dos símbolos que chegam até nós.
A criação de Satyavati aponta para a união entre um rei (representante do poder e da autoridade constituída, da civilização, da hierarquia, da ordem) e a Mãe Peixe (representante da força instintiva da natureza, do irracional, das profundezas, da não civilidade – diz o I Ching, o milenar livro chinês, que os porcos e os peixes são os animais mais difíceis de serem comandados). Neste par estão contidas inúmeras polaridades: masculino-feminino, humano-animal, cultura-natureza. Satyavati, a mulher com cheiro de peixe, é fruto desta junção. Simboliza a dificuldade de uma cultura que prioriza a ordem, a organização, a lei, a hierarquia, isto é, patriarcal, aceitar elementos provenientes do universo matriarcal (o apego, a natureza instintiva, sensual, concreta). No entanto, este lado da natureza humana é tão importante quanto o outro; somos tão racionais quanto irracionais, capazes de construir uma civilização, mas profundamente atrelados às nossas necessidades básicas, físicas, fisiológicas. Não podemos prescindir nem de um aspecto nem de outro. O que, então, é capaz de conjugar mundos tão diversos? O símbolo é a célula psíquica capaz de unir opostos, de juntar o que conhecemos com aquilo que ainda não sabemos, e por isso sempre traz o novo.
No caminho do desenvolvimento da Consciência, os símbolos são aliados importantes. São eles os portadores da energia psíquica transformada em algo acessível. O símbolo pode vir de uma imagem interna – um sonho ou uma inspiração, por exemplo, ou de uma experiência corporal – ou através de uma pessoa, ou de um fato. Na verdade, tudo o que chega até nós tem seu caráter simbólico, porque tudo é mais do que parece ser. O símbolo é esse veículo extraordinário que nos conduz para além da obviedade, apontando sempre para o que ainda desconhecemos. É por meio dele, portanto, que estruturamos e desenvolvemos nossa Consciência, e por isso Byington considera que os símbolos são sempre estruturantes. São os símbolos, portanto, os elementos que nos conduzem rumo a uma ampliação dos nossos horizontes, da nossa visão de mundo, desde que possamos elaborar seus significados e integrá-los à nossa Consciência. E como eles se expressam na Cultura? Através da Mitologia, dos Contos de Fadas, das Religiões, da História, da Alquimia, do Folclore etc. E da Arte. Através da Arte o indivíduo abre espaços para que a Cultura vá se transformando. Porque a Arte é símbolo vivo. É através do artista que muitos dos paradigmas são ultrapassados: a Arte é transgressão, é criação, inovação, revolução.
Na nossa história, é o artista Paraçara quem transforma o mau cheiro em perfume, quem faz com que o odor natural, forte e insuportável de Satyavati possa não apenas ser tolerado, como transformado em função de sua aceitação. E aqui podemos lembrar a estruturação das nossas defesas, como sendo muitas vezes fruto da rejeição, do desamparo, da não acolhida, da não aceitação – tudo o que só faz piorar o mau cheiro.
Enraizados na mesma matriz, a Psique, o que o sonho traz para o indivíduo, a Arte traz para a Cultura. O sonho, afirma Jung, quase nunca dirá ao sonhador o que ele já sabe. Por isso é tão difícil interpretar os próprios sonhos – tendemos a ver aquilo que já sabemos. Também a Arte exige criatividade e renovação. Assisti a uma entrevista com o arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer, na qual ele citava Flaubert, que dizia que a Arte tem que surpreender. A Arte é a surpresa, o inesperado, o novo, o inusitado.
Mas, o que mais pode caracterizar a Arte? Rilke, em seu livro Cartas a um Jovem Poeta, diz:
As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do qualquer outra coisa são as obras de arte, – seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera. (p. 21)
E mais adiante:
Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: “Sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples “sou”, então construa sua vida de acordo com esta necessidade. (pp. 22-23)
Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. (…) Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. (p.24)
Este é o chamado, a vocação, no sentido próprio do termo (vocare = chamar). É o fazer pela necessidade, pela urgência do chamado. Assim como é o ato de brincar, para a criança.
Jung (1922), por sua vez, nos diz que:
A obra (de arte) traz em si a sua própria forma; tudo aquilo que o autor gostaria de acrescentar, será recusado; e tudo aquilo que ele não gostaria de aceitar, lhe será imposto. Enquanto seu consciente está perplexo e vazio diante do fenômeno, ele é inundado por uma torrente de pensamentos e imagens que jamais pensou em criar e que sua própria vontade jamais quis trazer à tona. Mesmo contra sua vontade tem que reconhecer que nisso tudo é sempre o seu Self que fala, que é a sua natureza mais íntima que se revela por si mesma anunciando abertamente aquilo que ele nunca teria coragem de falar. Ele apenas pode obedecer e seguir esse impulso aparentemente estranho; sente que a sua obra é maior do que ele e exerce um domínio tal que ele nada lhe pode impor. Ele não se identifica com a realização criadora; ele tem Consciência de estar submetido à sua obra ou, pelo menos, ao lado, como uma segunda pessoa que tivesse entrado na esfera de um querer estranho. (par.110)
A Arte surge não do Ego, mas da natureza total. O artista se abre para o inesperado, e quantas vezes não se surpreende com o que sai dele! Como a mãe que gesta um filho, cabe ao verdadeiro artista dar passagem àquilo que agora emerge de dentro dele, mas que reconhecerá não ser ele e que, sabe, só surge Deo concedente.
Por isso, diz von Franz (1990), a atividade criativa deve ser feita de forma religiosa, no sentido de observação cuidadosa do numinoso. Um belo exemplo disso é a história de “Seu” Gabriel, contada por Byington (1994) em seu artigo “A Missão de Seu Gabriel e o Arquétipo do Chamado”, baseado, por sua vez, no livro da antropóloga Amélia Zaluar sobre a vida e a obra de Gabriel dos Santos.
Seu Gabriel nasceu em 1892. Seu pai era um negro mestiço, escravo e feitor de outros negros e sua mãe era filha de uma índia. Era o quarto filho, de uma família de doze irmãos. Desde cedo, manifestou uma acentuada queda para as artes. Cantava, fazia flores de papel crepom para vender, desenhava muito bem riscos para tecidos bordados. Pintava em cartolina sereias e santos, de encomenda, dedicando versos, de sua autoria, à pessoa que o contratava. Muito religioso, chegou a construir uma capelinha dedicada a Santo Antônio, onde ele organizava festas nas datas tradicionais da Igreja Católica. No altar, santos de barro, que ele mesmo esculpia e pintava. Mas quando percebeu que a religião católica não o satisfazia plenamente, passou para a Igreja Batista, à qual pertenceu até morrer. Nessa ocasião desfez-se dos santos e derrubou a capelinha.
Desde pequeno, Gabriel intuiu que teria que viver sozinho, “fora da família”, para fazer, com tranqüilidade os “trabalhinhos” de que tanto gostava, para ter seu espaço e liberdade de criar. Aos vinte anos, uma “revelação”, um sonho lhe mostrou que devia construir uma casa “só para si”.
Começou a construí-la pouco a pouco, e levou quase dez anos para concluir a obra. Dispunha de poucos recursos para comprar o material e trabalhava sozinho, em seus momentos de folga. Semi-analfabeto e utilizando como recurso principal a intuição, aprendeu sozinho a executar uma série de tarefas. Fez de tudo: foi pedreiro e carpinteiro, arquiteto e construtor, operário e artista. Mas não construiu uma cozinha, pois sentiu que naquela casa não se devia fazer refeições.
Depois de a casa terminada, um novo sonho lhe traz a idéia de enfeitá-la. Mas como? Com quê? “Matutando” muito, resolveu embelezar seu rancho com o refugo das construções locais, “restos de obras grandes da cidade”, com objetos e materiais quebrados encontrados no lixo, com coisas jogadas fora porque consideradas imprestáveis para o uso. – “Pensei em fazer do nada.”
Assim, não havia materiais “nobres” para Gabriel. Utilizava cacos, sobras, restos. Via neles, nos materiais mais humildes, possibilidades que os outros não viam. Tudo servia para compor sua casa/escultura, para dar vazão a uma prodigiosa criatividade. O “imprestável”, o “lixo”, o “inútil”, transformavam-se, através de seus olhos visionários, em matéria preciosa para a produção de beleza não percebida pelas pessoas comuns. Surge a Casa da Flor.
Em seu discurso, percebe-se que acreditava criar guiado por inspiração divina, associando sua capacidade inventiva com a força e a criatividade de um espírito superior: – “Eu mesmo fazendo, eu mesmo me espantando, isso pode ser só de mim?… Isso não é da gente, não. É o espírito de Deus que concede!”
Gabriel nunca se casou, nem teve filhos. Sempre morou sozinho na Casa da Flor. Dizia mesmo que não conseguia dormir com a presença de outra pessoa em sua casa, mesmo que fosse uma criança. Isso o perturbava muito. Teve como companhia, durante muitos anos, alguns cachorros, dentre eles, Diamante. Quando este morreu, anotou seu pesar em um caderno e construiu para ele um túmulo. Fez o mesmo para uma galinha, à qual havia se afeiçoado.
Seu Gabriel foi gradativamente perdendo a visão, e, no final, via somente sombras. Mas isso lhe bastava para que continuasse trabalhando no embelezamento do seu lar, o que fez até os 92 anos, quando faleceu sem deixar sua casa. Cinco dias antes de sua morte, pediu ao sobrinho Wilson para zelar por sua casa, para ser “sua pessoa”, justificando: – “Isto é um enredo, uma história”…
Segundo Byington,
O Arquétipo do Missionário se constelou na personalidade de Seu Gabriel dentro do dinamismo de alteridade. A casa como Outro fascinou o Ego para uma vivência dialética e criativa, que o atraiu em função de um todo incomensurável vivenciado por Seu Gabriel como a vontade de Deus, a ele revelada paulatinamente durante o desenvolvimento da obra. A imaginação e o sonho interligaram o Eu, o Outro e o Todo através de uma vivência afetiva e intuitiva de origem racionalmente inexplicável e revelada por símbolos. A construção da casa tornou-se, assim, uma ocupação criativa inerente a uma vocação existencial inseparável do significado da vida. É a vivência da arte subordinada à totalidade. (1994, p.118)
Outro exemplo da ligação entre a arte e a religiosidade foi presenciado por mim ao assistir a uma apresentação de uma bailarina indiana. A Índia possui tradicionalmente uma cultura na qual a sacralidade não ficou tão separada das atividades seculares, ou melhor, nesse país, muitas das atividades permanecem, ainda com uma certa freqüência, inseparáveis de seu caráter sagrado. Assim, antes de determinadas atividades cotidianas, alguns ritos são realizados. Isso ocorre também antes de uma performance de música clássica, ou uma apresentação teatral. Na apresentação à qual me refiro, a dançarina, ao iniciar o espetáculo, havia feito um rito de entrada – uma homenagem a um deus, possivelmente Ganesha, considerado o patrono das Artes e, não por acaso, aquele que abre caminhos; ou então, a Shiva Nataraja, o deus que criou o mundo dançando [segundo uma dançarina, “qualquer Deus pode estar lá: Nataraja, Ganesha. (…) Para uma estudante cristã, tínhamos um Nataraja e um Jesus no palco.” (Gaston, p.163)]. Ao final da apresentação, foi muito aplaudida e a platéia pediu bis. Ela então, de modo absolutamente natural, pediu desculpas de antemão, dizendo que ela já havia feito o rito de saída (evidentemente não usou esta terminologia), e que, portanto, quem iria se apresentar agora seria somente ela, e por isso a dança não seria mais a mesma coisa. Isto revela a enorme diferença que existe entre a Arte como expressão de algo maior, expressão da totalidade, e a expressão puramente egóica. Não sei se nós, da platéia, teríamos sintonia e sensibilidade suficientes para perceber isso, mas, para ela, era algo que fazia toda a diferença. A esse respeito, comenta Indira Rajan, dançarina de uma família tradicional de dançarinas: “Porque os componentes da dança são baseados em Deus, o palco deve ser como um templo” (idem, ibidem).
Em seu livro O Sagrado, Rudolf Otto estuda a experiência religiosa buscando esclarecer seu caráter específico e sua fenomenologia. Procura descrever o “Deus vivo”, e não uma idéia ou noção abstrata de Deus, mas sua vivência. Encontra, então, o sentimento de pavor diante do sagrado, do mysterium a um só tempo tremendum e fascinans, que exala uma superioridade esmagadora de poder e no qual se expande a plenitude do Ser. Essas experiências foram chamadas por Otto de numinosas (numen=deus), porque são provocadas pela revelação de um poder divino.
O mundo numinoso caracteriza-se como qualquer coisa de ganz andere (totalmente outro) de radical e totalmente diferente; em relação ao ganz andere, o homem tem o sentimento de profunda nulidade, o sentimento de não ser mais do que uma criatura. (Eliade, p.24)
Voltemos aqui ao Mahabharata, mais especificamente aos ensinamentos do Gita, que propõe que as ações não visem seus frutos, e que sejam movidas pelo sentido profundo contido nelas mesmas. Esta é a ação que expressa a conexão consciente com o centro, com o Arquétipo Central, com o Todo, e por isso, basta a si mesma. A plenitude se revela àquele que cria porque, ao criar, ele obedece ao chamado para que realize sua natureza profunda. Ao acolhê-lo, o ser humano exercita e é tomado por sua capacidade imaginativa; através dele, o mundo é criado e, ao criar, o ser humano é. Por isso, o ato de criar basta a si mesmo e não busca finalidade outra que ele próprio, pois seu sentido lhe é inerente.
Essa concepção aproxima-se da idéia indiana da criação através do lilā, o jogo divino que acontece num estado de arrebatamento muito semelhante ao do artista imerso no processo criativo. Os deuses são tão plenos e completos que sua atividade só pode ser vista como livre dos domínios da lei de causa e efeito, e para além da natureza pragmática e utilitária que governa os seres humanos. Ao contrário, sua ação volta-se para o reino da liberdade. Sob esta perspectiva, a liberdade criativa é um ato divino.
Podemos, assim, pensar no ato criativo como a vivência de uma hierofania, termo proposto por Eliade e que significa a manifestação do sagrado.
De acordo com von Franz (1990),
A arte como fenômeno psíquico primordial cumpre uma tarefa religiosa e representa um aspecto do “levar cuidadosamente em conta as forças transcendentais” que correspondem aos cantos, preces e rituais dos sacerdotes. Dar forma aos espíritos é tarefa “sagrada” e as obras devem ser formadas em atenção a si mesmas (ao espírito), e não de acordo com o gosto ou a disposição de ânimo do artista. (p. 246)
Em termos psicológicos, podemos dizer que o sagrado é tudo aquilo que nos faz ultrapassar a literalidade, abrindo nosso horizonte para o ganz andere, para o mais além. Em outras palavras, a transcendência nos é dada pela dimensão simbólica. Lembremos que a transcendência é aqui compreendida como a percepção da relação entre o Ego e algo que ele vivencia como maior que ele. Por isso nos diz Eliade (1956) que, para aqueles que têm uma experiência religiosa (para nós, uma vida simbólica), toda a Natureza é susceptível de revelar-se como sacralidade cósmica (p. 26). O homem religioso (o homo simbolicus) se esforça por permanecer o maior tempo possível ligado a um universo sagrado (ou seja, à totalidade). No ato de criar, o artista busca aquele momento mágico, sagrado, no qual a obra lhe diz que está completa.
Ainda de acordo com Eliade, o espaço sagrado é uma ruptura dentro do espaço profano. Este temenos é a terra consagrada, a nossa pátria, a nossa casa, o templo, o espaço analítico, mas também o palco, a tela, o papel que receberá um poema, o chão onde a criação do arquiteto tomará forma. No recinto sagrado, é possível a comunicação com os deuses. Quanto ao tempo, Eliade também considera o tempo sagrado aquele que se abre para a eternidade, para a permanência. O tempo sagrado é o tempo dos mitos, da essência, da Arte, que se sobrepõe à vida. “Para além da vida está a morte; para além da Arte, a eternidade”, disse o poeta.
A ligação profunda entre a Arte e transcendência faz com que muitas vezes elas se unam e se mesclem a tal ponto que se tornam indistintas. Alguns exemplos são as pinturas realizadas nos corpos de povos tribais em momentos importantes; ainda hoje, em cerimônias de casamento, muitas indianas pintam as mãos e os pés; as danças sagradas, realizadas inclusive em templos, como é o caso das devadasis, as dançarinas hindus “dedicadas a um marido divino que nunca morre”, que em rituais festivos dançam o drama para recriar a história divina. Temos também poemas místicos, como A Noite Escura da Alma, de San Juan de la Cruz, e o Gitagovinda, de Jayadeva; músicas e cânticos sagrados, entoados em templos; a arte sacra, espalhada pelo Ocidente e Oriente; a arquitetura, expressando ela própria a sacralidade do espaço, e tantas outras manifestações. Quero ressaltar, entretanto, aquela arte cuja expressão é inseparável do sagrado: a Mandala.
As mandalas são círculos sagrados, formas concêntricas criadas tradicionalmente com a finalidade de “colocar um fim no sofrimento, um desejo intenso de buscar a iluminação em prol dos outros e uma visão correta da realidade” (Dalai Lama, in Brauen, 1992). Fundamentalmente, são secretas. São representações pictóricas utilizadas, por exemplo, no Budismo Tibetano para expressar as verdades religiosas mais profundas. São aspectos do Absoluto, mas não ele próprio em todo seu esplendor e bem-aventurança. O objetivo de cada visualização é descobrir e realizar a divindade radiante. Assim, essas representações são auxílios para a meditação, para buscar e encontrar um centro, onde, tradicional e universalmente, considera-se o lugar da divindade (Brauen, 1992).
As mandalas podem ser pintadas, mas também desenhadas e dançadas, como é feito em muitas tradições, com as danças circulares. Para Jung,
desde tempos imemoriais, o círculo e o centro têm sido considerados símbolos do divino, ilustrando a unidade do deus encarnado: o único ponto no centro e muitos na circunferência. (1950, par. 327)
É importante lembrarmos também que a criatividade do artista está inserida tanto no Self Cultural como no processo de desenvolvimento de sua personalidade, pois indivíduo e cultura são polaridades inseparáveis. Alguns artistas, inclusive, escancaram seu processo pessoal para a Cultura, expondo em sua Arte vivências extremamente íntimas, mas que, ao se fundirem às experiências profundamente humanas, transcendem a individualidade e mostram seu caráter universal. Penso que a obra de Frida Kahlo exemplifica isto de uma maneira extraordinariamente exuberante.
A criatividade do Self não se restringe à criatividade pela Arte, embora ela possa estar presente de forma explícita, sobretudo quando o caminho da realização do Ser, o Processo de Individuação, passa pela sensibilidade artística e pela necessidade de a pessoa elaborar essas vivências na dimensão estética.
Byington (1996) afirma que a dimensão onírica, por exemplo, tem tudo a ver com a dimensão da poesia. Diz ele:
Sua expressão em imagens metafóricas capazes de evocar as mais variadas emoções e nuances da sensibilidade da alma sem a obrigação de se explicar coisa alguma tornam os sonhos a poesia noturna do Self. (p. 135)
Abrir-se para a vida simbólica é abrir-se para o mistério. E a vida é um grande mistério. Quanto mais importante for a experiência, mais misteriosa ela será. Experiências fundamentais, como o amor, a morte, a transcendência, são vivências profundas e impossíveis de serem circunscritas pela nossa razão. Necessitamos, assim, uma linguagem metafórica para tentar expressar de modo mais completo o que vivemos. Nesse contexto, a Arte é fundamental. Sua linguagem simbólica, metafórica, seja ela poética, dramática, através da expressão corporal, da música, das cores e das formas, estende-se sobre todas as culturas, mantendo nossa identidade ao mesmo tempo em que é profundamente transgressora.
Ao não precisar explicar coisa alguma, a Arte é inseparável da liberdade. A Arte não pode ser presa, nem restrita, limitada ou confinada pelo que quer que seja. A Arte, assim como os sonhos, é livre e libertária. Como nossos sonhos apontam o caminho da criatividade profunda, a liberdade intrínseca à Arte faz dos artistas seres precursores de mudanças culturais.
Citando Fernando Pessoa, toda arte é uma confissão de que a vida não basta.
Referências Bibliográficas
Brauen, Martin (1992). The Mandala – Sacred Circle in Tibetan Buddhism. London: Serindia Publications, 1992.
Byington, Carlos A. B. “A Missão de Seu Gabriel e o Arquétipo do Chamado”. Junguiana, Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, no.12, 1994, pp. 110-133.
___________ (1996). Pedagogia Simbólica. Edição revisada e atualizada: A Construção Amorosa do Saber. São Paulo: W11 Editores, 2004.
Carrière, Jean-Claude. Māhabhārata (Guia do espectador para o filme de Peter Brook). Tradução: Carlos Alberto da Fonseca, USP, 1992.
Eliade, Mircea. (1956). O Sagrado e o Profano – A Essência das Religiões. Lisboa: Ed. Livros do Brasil, s/d.
Gaston, Anne-Marie “Dance and the Hindu Woman – Bharatanatyam Re-ritualized”, in Leslie, Julia, ed. Role and Rituals for Hindu Women. Cambury: Assoc. UP, 1991.
Jung, Carl Gustav (1922). Relação da Psicologia Analítica com a Obra de Arte Poética. CW15. Petrópolis: Ed.Vozes, 1987, par. 110.
___________ (1950). Concerning Mandala Symbolism. CW9 Part I. London: Routledge & Kegan Paul, 1959.
Kinsley, David (1979). The Divine Player – A Study of Krishna Lilā. Delhi: Motilal Banarsidass, 1979.
Rilke, Rainer Maria (1953). Cartas a um Jovem Poeta. Porto Alegre: Editora Globo, 1983.
von Franz, Marie-Louise (1990). Psicoterapia. São Paulo: Paulus, 1999.