A capacidade de desenvolver a consciência é a base da nossa humanidade. Patrimônio da nossa espécie, somos impelidos instintivamente a realizar este potencial, ao mesmo tempo em que faz parte de nós um apego que tende a nos manter inconscientes (Clique Aqui para saber mais sobre o Inconsciente de acordo com Jung). Vivemos dentro da tensão gerada por este par oposto: de um lado, somos seres preparados para atingir um grande desenvolvimento da Consciência, possuidores de um cérebro bastante complexo e capazes até mesmo de buscar desvendar os segredos do Cosmos; de outro, criaturas ínfimas na imensidão do Universo, mergulhadas no grande desconhecido, no mundo indiferenciado da inconsciência, que aí nos mantém com a força da inércia. Como nos ensinam inúmeros mitos e muitas religiões, e como qualquer um que já tenha buscado aprofundar em si mesmo sabe, a busca da Consciência é equiparada à do tesouro difícil de obter, à busca da Pedra Filosofal dos alquimistas.
Mas essa grande polaridade não é a única na qual se insere a vida humana. Na verdade, nosso destino é exatamente elaborar as tensões provenientes das mais diversas polaridades que, em cada uma de nossas experiências, nos chegam através dos símbolos. São eles as matrizes unificadoras de opostos, e por isso são a matéria prima na estruturação da nossa Consciência, seja no âmbito individual ou coletivo.
A cultura ocidental nos faz assistir, atualmente, a uma grande modificação dos valores coletivos e de suas expressões na vida e nos relacionamentos das pessoas. As mudanças ocorridas nas últimas décadas, a ampliação do papel exercido pela mulher, o efeito disso na relação entre elas e os homens, e de ambos com a família e a sociedade, as transformações do mercado de trabalho, o avanço tecnológico, a presença cada vez mais intensa do terceiro setor, tudo isto pode ser visto como expressões, às vezes mais bem sucedidas, às vezes menos, do Arquétipo da Alteridade (mais sobre Arquétipos e as suas aplicações aqui). Este arquétipo nos coloca diante de um novo paradigma ao propor a coexistência e a interação dialética entre os dois pólos de uma mesma polaridade, abrindo espaço para que se dê direitos iguais para a expressão das diferenças (Byington, 1996).
Hoje, para muitos já é natural considerar que homens e mulheres, negros e brancos, ricos e pobres, tenham os mesmos direitos. A constatação de que a nossa Consciência, como espécie, vem se ampliando, nos enche de esperança quanto à possibilidade de uma maior implantação do padrão de alteridade. É preciso reconhecer, porém, que grande parte destas mudanças permanece ainda mais no âmbito das idéias do que no das ações, mais virtuais que reais.
Para funcionarmos dentro da alteridade, que é o padrão de Consciência que propicia uma relação dialética entre as polaridades, temos que nos deparar com nossos valores, regras, convicções e revê-los a cada desafio, pois, ao contrário do que ocorre frequentemente no padrão patriarcal, não temos aqui uma resposta pré-estabelecida e aceita como de validade universal. Aquilo que é considerado bom em uma situação, pode não sê-lo em outra. Este fluxo constante entre certo-errado, bem-mal, sim-não, para mencionar apenas alguns pares de opostos, faz com que sejamos constantemente obrigados a nos rever e a considerar cuidadosamente cada resposta, cada escolha, cada encruzilhada com que nos deparamos. Isto demanda um maior exercício de nossa responsabilidade ética, ao mesmo tempo em que nos desafia permanentemente.
O fato de não se conhecer de antemão a resposta para uma dada situação, e de se perceber que, muitas vezes, não existe apenas um caminho único e correto a ser seguido, nos desafia permanentemente a lidar dialeticamente com os paradoxos inerentes à condição humana no caminho para o desenvolvimento e transformação da Consciência, e exige uma dedicação constante ao processo de elaboração simbólica.
No entanto, para caminharmos em direção a nós mesmos, temos que enfrentar o paradoxo de sermos diferentes dos outros, embora profundamente iguais na nossa humanidade arquetípica. Assim, na relação conjugal, por exemplo, ao mesmo tempo em que devemos considerar o Outro, devemos nos levar em conta como indivíduos únicos e singulares. A presença de polaridades opostas na Consciência, isto é, a percepção não apenas da nossa luz, mas também da nossa Sombra, costuma gerar grande tensão, e o resultado é que, muitas vezes, tombamos no meio do caminho, desistimos de lutar, e tomamos partido de um dos pólos. Por exemplo, aceitamos os valores coletivos porque dizer “sim” pode ser mais fácil, porque menos conflituoso. Patriarcalmente, escolhemos uma polaridade, ficamos de um só lado, e assim nos livramos do conflito, da tensão que é estar entre opostos; podemos até mesmo criar uma Persona adaptativa que venha a favorecer a relação com o mundo externo, mas certamente ficaremos mais empobrecidos, afastados de nossa verdade. A busca de alteridade, de uma relação simétrica entre as polaridades, implica, portanto, no confronto com a Sombra, no suportar paradoxos, na busca de valores próprios, e, sempre também, na coragem de transgredir a tradição.
Como ocorre em qualquer vivência humana, a transgressão é uma função psicológica que em si mesma não é boa nem má, criativa ou defensiva, mas capaz tanto de estruturar a Consciência como de formar a Sombra (Byington, 2002). Quando defensiva, a transgressão surgirá de modo sombrio, e o transgressor buscará levar vantagem desrespeitando limites, sejam estes individuais ou coletivos. A transgressão criativa, no entanto, fruto de reflexão e vivência, é baseada no sentimento e convicções profundos de que este é o caminho que nos fará crescer, mesmo que seja mais difícil e mais doloroso. A consideração cuidadosa consigo e com o outro é, portanto, elemento fundamental para a transgressão criativa, que vem, portanto, impreterivelmente acompanhada da ética. A função da ética, quando exercida dentro do padrão de alteridade, coloca o Ego e o Outro lado a lado no que se refere à importância e ao cuidado. Esta ética, denominada por Jung de Ética da Individuação, torna-se inseparável da vivência de compaixão, do sentir com o Outro, ao mesmo tempo em que é norteada pela fidelidade aos símbolos e ao processo de desenvolvimento. Por isso a energia gerada pela tensão decorrente da transgressão é muito intensa quando acompanhada da ética de alteridade.
Um psicoterapeuta experiente certamente está familiarizado com situações em que o desenvolvimento do indivíduo está intimamente ligado a uma vivência transgressora: um amor proibido, uma ideia que abala uma estrutura convencional, um gesto que desafia a ordem estabelecida. O mesmo ocorre com os mitos que expressam a vida cultural. Atos transgressores e revolucionários, simbolizados pelo comer do fruto proibido, pelo roubo do fogo por Prometeu ou pelas pregações de Cristo são apenas alguns exemplos de transgressões que marcaram um profundo desenvolvimento da Consciência, ao mesmo tempo em que revelam as punições destinadas àqueles que ousam transgredir: a exclusão, a tortura e até mesmo a morte.
Jung (1951) afirmava que o processo de individuação geralmente tem início com um conflito moral, ou seja, a partir de uma vivência transgressora. Nesse caso, a repressão do elemento transgressor nos deixa normatizados, dentro dos limites pré-estabelecidos, convencionais, e, muitas vezes, aquém da capacidade criativa do indivíduo. O desenvolvimento da Consciência rumo à realização da identidade mais profunda, que nos impulsiona em direção à descoberta do sentido da vida através do significado das experiências, é possivelmente o maior dos atos transgressores, e por isso mesmo, requer o desenvolvimento da função ética.
Ao lado do imenso desenvolvimento tecnológico, aliado ao apelo para um consumismo exacerbado, nossa cultura fomenta o distanciamento de um contato mais íntimo e profundo com nossa natureza e necessidades mais essenciais. Dentre nossas grandes perdas está a dessacralização da vida. O sagrado foi sendo paulatinamente confinado a templos que, mesmo assim, estão cada vez mais alijados da experiência do numinoso e abertos para cultuarem valores materiais. O resultado é que a vida passa a ser imediatista, dissociada do sagrado e da transcendência, pois cada vez temos menos espaços que ofereçam às pessoas o contato com essa dimensão. Os lugares numinosos, nos quais a presença de Deus se faz viva, estão cada vez mais distantes da experiência cotidiana das pessoas, especialmente daquelas que vivem em grandes cidades e que, com frequência, não veem o nascer nem o pôr-do-sol, nem as estrelas, nem a lua, escondidos pela poluição.
Sem um espaço preservado no qual os ritos de passagem tenham lugar, onde as iniciações possam ser levadas a cabo, em que um guia acompanha a vivência de crescimento e transformação na qual o sagrado se manifesta, o ser humano se aliena de sua alma, de seu espírito, e, ao viver uma existência dominantemente profana, perde o contato com seu próprio centro e com o significado essencial e redentor de suas experiências.
A profanação da vida traz a falta de sentido, a sensação de vazio, de perda de conexão com o significado da existência, e com isso, aniquila a alma. A sacralidade da vida opõe-se à sua banalização, assim como a transgressão transcende a normatização. Nossa Cultura, cada vez mais encurralada pelo consumismo e materialismo, oferece ao indivíduo cada vez menos espaço para ele experimentar o sagrado e elaborar o significado das vivências transgressoras criativas. Assim, cada vez mais os consultórios dos analistas surgem como espaços para a vivência dos símbolos confinados, que não encontram um lugar na sociedade.
Sacralidade e transgressão têm em comum o elemento de ruptura com o status quo. Na verdade, como funções estruturantes criativas, o sagrado pode ser profundamente transgressor, assim como a transgressão pode vir acompanhada de uma vivência do sagrado, que conduz a uma experiência de totalidade e, portanto, não subordinada ao Ego e a valores construídos aleatoriamente.
Nossa capacidade de elaboração simbólica, que Jung (1916) denominou Função Transcendente, é a condição fundamental para a realização do nosso potencial humano. É através dela que as experiências podem ser vividas com profundidade e significado. Algumas dessas vivências, como o amor e a criatividade, são funções estruturantes que podem ser extremamente transgressoras e sagradas, e que, ao mobilizarem grande quantidade de energia, contribuem imensamente para a estruturação, desenvolvimento e transformação da Consciência.
São inúmeras as vezes em que a vida nos coloca diante do binômio amor e transgressão. Como psicoterapeuta, tive oportunidade de acompanhar vários processos em que a pessoa é desafiada por vivências amorosas transgressoras criativas que, ao lado do germe de uma nova Consciência, trazem também muita dor e sofrimento. Com frequência são as vivências amorosas as grandes fontes de estímulo, de entusiasmo, de vida. Mas são também portadoras de angústias terríveis, frustrações, medos e, em alguns casos, tornam-se inseparáveis da vivência do sacrifício. Casos de amores proibidos são incontáveis, não apenas nos mitos e na literatura, mas sobretudo nas vidas de cada um. Convém lembrar, no entanto, que transgredir as interdições nem sempre equivale a realizar concretamente determinado ato, podendo ser vividos como transgressores o sentimento ou pensamento, ainda que não atuados. Isto quer dizer que a vivência da transgressão pode ocorrer de maneira predominantemente subjetiva.
Por trazer geralmente um desafio ao coletivo e, portanto, ser associada ao erro, e este à punição, a transgressão criativa pode vir acompanhada de medo, o que tolhe a criatividade e o desenvolvimento da pessoa que, por isso, permanece aquém das suas possibilidades.
Gostaria de ilustrar este tema com uma história retirada do épico hindu Mahābhārata, um poema quinze vezes maior que a Bíblia, e composto por volta de 400 a 200 A.C. O título desta obra, A Grande História de Bhārata, pode ser traduzido também como A Grande História da Humanidade. A estrutura deste poema é em gavetas, ou seja, compõe-se de inúmeras histórias que vão entrando uma dentro da outra, sendo que seu tema central é a grande batalha de Kurukshetra, travada entre dois grupos de primos, para a sucessão ao reino, mas que afetará todo o Universo. Dentre as personagens encontramos a princesa Gandhari, dada em casamento a Dhritarashtra. Pouco antes de conhecê-lo, e também do casamento, ela fica sabendo que seu futuro marido é cego. Gandhari decide então vendar seus olhos para sempre, o que faz antes de conhecê-lo pessoalmente. Após o casamento, ela engravida e sua gestação dura dois anos. Só consegue dar à luz depois que uma criada, a seu pedido, bate com uma barra de ferro em seu ventre, de onde sai uma bola de carne, indiferenciada. É instruída para dividir essa massa em cem, colocar cada parte em um jarro e jogar um pouco de água fresca. É daí que nascem seus cem filhos.
Sua cegueira voluntária irá acompanhá-la até pouco antes da morte, quando Dhritarashtra diz que ela havia se casado com ele sem saber de sua cegueira e que, por isso, havia destruído sua vida. Ela responde que ele, a princípio, não acreditara que ela pudesse não retirar a venda, e que também nunca lhe ordenara que o fizesse, nem para ver seus filhos. Seu marido responde que sempre havia notado nela uma raiva, e, nesse instante, manda que ela retire a venda. Ela reluta, mas obedece. Vê então a paisagem, um rio, uma floresta e pássaros. Percebe que a floresta está incendiando. Dhritarashtra diz a ela que fuja pelo rio, mas ela prefere dirigir-se à floresta e, juntos, entram no fogo. Kunti, sua concunhada e mãe dos Pandavas, que guerrearam com seus filhos, a acompanha. É o fim.
Está fora da proposta deste breve artigo uma abordagem mais extensa e profunda de símbolo tão rico. Gostaria, no entanto, de chamar atenção para alguns aspectos. O primeiro é o fato de Gandhari decidir vendar os olhos ao saber da cegueira de Dhritarashtra. Se considerarmos este gesto em sua dimensão criativa, podemos ver nele um ato de solidariedade, compaixão, desprendimento, abnegação e sacrifício. A cegueira para o mundo externo pode simbolizar a abertura de horizontes internos, o irromper de intuições frutos da introspecção, como é ilustrado pelos cegos videntes, como, por exemplo, Tirésias. Temos também o símbolo da justiça, cega porque a todos julga com equanimidade, sem qualquer distinção.
Porém, quando percebemos que a decisão de vendar os olhos vem depois de Gandhari pensar que seu marido nunca a verá, nem suas vestes, seus cabelos, seus lábios pintados, insere-se aqui um aspecto defensivo: ao se descobrir impossibilitada de ser vista, decide, reativamente, não ver mais. Renuncia para sempre a um dom que possui para igualar-se, passivamente, a uma condição mais limitada que a sua. A cegueira de Gandhari expressa o cerceamento auto-imposto quando nos nivelamos com o Outro pelas restrições, em função da nossa dificuldade de transgredir criativamente os limites determinados pela tradição, pela família, pelo parceiro ou por nós mesmos. A cegueira de Gandhari simboliza também nossa alienação, nosso fechar os olhos para a realidade da vida.
Gandhari é uma princesa indiana, proveniente de uma cultura na qual, ainda hoje, predominam os casamentos arranjados, sobretudo nas castas mais altas. A escolha é feita pelas famílias, e acontece de os noivos só virem a se conhecer pouco antes do casamento. Faz também parte da tradição que o pai da noiva ofereça um dote à família do noivo. Acrescenta-se a isso o papel cultural dado à mulher, que é o de submissão total ao homem: primeiro ao pai, depois ao marido e, na falta deste, ao filho ou ao irmão do marido. Assim, depois do casamento, a mulher passa a pertencer à família do marido, frequentemente morando junto com ela. Vemos, portanto, que dizer “não” a um noivo prometido dentro de um contexto no qual o Self Cultural e o Self Familiar interferem maciçamente no Self Individual deve ser tarefa inadmissível. A submissão defensiva de Gandhari se revela quando ela recrimina Dhritarashtra por não tê-la obrigado a tirar a venda. Ainda que junto com essa postura haja também uma boa dose de agressividade que, projetada no Outro, irá responsabilizá-lo pela restrição e limitação que se auto-impôs, Gandhari continua, porém, na mesma posição passiva, pois reafirma sua falta de liberdade, iniciativa e autonomia ao mostrar que só teria agido em obediência ao marido.
Possivelmente devido à tradição patriarcal, que ensina a mulher a se sacrificar pelo Outro, por exemplo na maternidade e no casamento, também no Ocidente esse sacrifício defensivo é mais comum nas mulheres, que muitas vezes deixam de desenvolver seu potencial criativo, de liberdade, autonomia, expressividade e participação cultural ou social. A consequência de se escolher ficar aquém do próprio potencial é estar permanentemente em débito consigo mesmo, gerando uma insatisfação que se expressará das mais diferentes maneiras, como, por exemplo, pela depressão, perda do sentido da própria vida ou sintomas físicos. Ao preferir o conformismo à ousadia, a paralisia ao movimento, a acomodação à transformação, a adaptação, submissão e obediência à transgressão, o desenvolvimento fica estagnado ou bastante limitado. Isto é também simbolizado em Gandhari, cuja gravidez tem a duração de dois anos e que só consegue dar à luz utilizando-se de violência. A gestação prolongada revela a dificuldade em transcender-se e dar à luz algo criativo, diferenciado. Quando estamos presos numa fixação, isso impede a transgressão criativa, pois restringe a atuação do Ego a repetições de padrões já conhecidos. Essa interpretação é confirmada quando seus cem filhos nascem indiferenciados e precisam ser separados. Noventa e nove são homens e só a última é mulher. Isto ilustra o fato de a mãe patriarcalmente reprimida resistir a criar e, quando o faz, tende a manter sua criatividade indiferenciada e, em sua maior parte, dentro da hegemonia predominante do homem.
Quando a pessoa não desenvolve seu potencial, ela prejudica não apenas a si própria, mas também aos filhos e às pessoas que estão à sua volta, além de restringir sua participação criativa no âmbito da sociedade e da cultura. Numa família, esta dificuldade pode ser transmitida às gerações futuras. Ao escolher não enxergar, Gandhari deixa de ver seus filhos, que crescem sem serem vistos pelo casal parental. Esse estado indiferenciado com o qual nascem os filhos de Gandhari prolonga-se por todo o épico e estão amalgamados na irritação, na infelicidade e no destempero de seu primogênito, Duryodhana.
Não ser visto em suas necessidades produz, no ser humano, um efeito profundamente deletério, pois o olhar do outro sobre nós é fundamental para o estabelecimento da nossa identidade. Sabemos que a luz, elemento indispensável à visão, é associada à Consciência. É também a visão o órgão dos sentidos que possivelmente mais expresse um encontro de alteridade, pois permite que o Ego e o Outro interajam de modo simétrico e simultâneo. Ao olhar o olhar do Outro, vejo e sou visto, vou em direção ao Outro e também o acolho. Decidir não ver é privar-se desta interação direta.
Ao escolher vendar os olhos e não diferenciar-se do marido, Gandhari fecha os olhos para o significado da cegueira dele dentro do Self Cultural da Índia antiga. Assim, não pode se dar conta e contribuir para a elaboração do profundo drama que se estende por todo o reino de Bhārata, condenando-se à alienação frente à história. Vendando seus olhos concreta e metaforicamente, torna-se incapaz de perceber a cegueira da civilização patriarcal, ficando passivamente aprisionada na escuridão do Self Cultural e impedida de contribuir para quaisquer mudanças no âmbito coletivo. Dá mostras disso quando projeta a sua Sombra em outra princesa e diz: “Draupadi, como todas as mulheres, não se distingue de seu esposo”. Esta indiferenciação marcou sua história, bem como a história das mulheres que se submetem cegamente à dominância histórica patriarcal da cultura. A alienação, a cegueira, a impossibilidade de transgredir a tradição, tudo isso contribui para a manutenção do status quo. Gandhari simboliza a perpetuação da posição submissa da mulher, incapaz de revelar sua alma e de expressar livre e plenamente sua criatividade.
Ao retirarmos a venda dos olhos de Gandhari e olharmos simbolicamente para a cegueira do rei Dhritarashtra, aprofundamo-nos no enredo dramático do Mahābhārata. O rei nasce cego porque sua mãe (Ambika), no momento da sua concepção, fechara os olhos por não aceitar seu relacionamento com Vyasa. Seu marido falecera sem consumar o casamento e, portanto, sem deixar herdeiros, e por isso Vyasa, meio-irmão do marido, foi incumbido de substituí-lo. Embora tivessem a mesma mãe, o pai do marido pertencia a uma linhagem nobre, um pai épico que remonta aos primórdios da humanidade, enquanto que Vyasa é filho de um eremita andarilho e artista, sendo ele mesmo um poeta e fruto de um casamento fora das regras. A cegueira de Dhritarasthra expressa, portanto, um significado muito importante na relação conjugal entre o homem e a mulher, pois é fruto do repúdio de sua mãe pelo seu pai. Nesse sentido, repudiar a união com Vyasa simboliza a resistência de Ambika a transcender a tradição patriarcal em direção à alteridade. De fato, Vyasa, o poeta que dita o Mahābhārata para que seja escrito por Ganesha, o deus com cabeça de elefante, é a expressão, pela poesia e sua dimensão metafórica, da criatividade da alteridade, da mesma forma que o poeta Valmiki o fora ao ditar o Ramāyana, o outro grande poema épico da literatura indiana, o qual abordei anteriormente (Guerra, 1988).
Gandhari, com seus olhos vendados aos significados de Dhritarashtra, representa a incapacidade de uma mulher participar, junto com o homem, como agente do drama cultural. A cegueira voluntária de Gandhari revela, assim, uma arrogância masoquista inconsciente, que aparenta a compaixão da alteridade, mas é, na realidade, a sua Sombra, dando continuidade aos olhos fechados de Ambika e complementando a cegueira de Dhritarashtra. Numa espécie de acordo tácito, a mãe produz um filho cego que encontra uma mulher disposta a não enxergar, e ambos perpetuam esta cegueira metafórica gerando filhos indiferenciados, inflados, arrogantes, guerreiros e com um potencial imensamente destrutivo. A cegueira da mulher, dentro da sociedade patriarcal, interessou e foi usada pelo homem que, ao mesmo tempo que usufruía de sua submissão e alienação, a criticava e racionalizava a opressão por ele praticada com a teoria de que a mulher não tinha inteligência, nem espírito e até mesmo prescindia de alma. Esta atitude foi simbolicamente expressa na Idade Média da Cultura Ocidental pela noção de que as mulheres não tinham alma e por isso não podiam ministrar os sacramentos nem fazer parte do poder institucional da Igreja. Ao furtar-se à responsabilidade de contribuir ativamente, com sua alma, sua visão de mundo, sua sensibilidade, para a construção de relacionamentos mais simétricos, a mulher complementa a cegueira do homem patriarcal e faz dele um bode expiatório por não incentivá-la a ser ou fazer o que ela própria não se permite. Talvez por isso Dhritarashtra nunca tenha pedido a Gandhari para retirar a sua venda, e ela, por sua vez, não a tenha retirado esperando, amargurada, que um dia ele ordenasse que ela o fizesse. Essa atitude de Gandhari, no âmbito individual, pode ser vista como uma defesa masoquista histérica. Atua sua dor impondo ao rei e ao reino uma rainha cega, como que para ostentar o “castigo” que lhe havia sido infligido e a humilhação a que se submetera. Nesse sentido, é como se dissesse, expressando histericamente sua agressividade: vocês me deram um marido cego, então terão que conviver com uma rainha ainda mais cega. Ao recusar-se a ver, Gandhari faz jus ao ditado “o pior cego é aquele que não quer ver”. No Self Social e Cultural, vemos como ela, ao negar a plenitude de seu potencial, se furta à responsabilidade de contribuir e participar ativamente para o desenvolvimento e transformação do reino e dos valores nele vigentes.
Os hindus costumam dizer que não há experiência humana que não esteja presente no Mahabharata, o que nos permite estudá-lo como expressão do processo de desenvolvimento da Consciência. Esta moldura mitológica do Self Cultural nos permite abordar a cegueira voluntária de Gandhari em toda sua extensão pessoal e arquetípica. Nesse sentido, este símbolo reflete uma pequena manifestação da luta entre as diferentes polaridades, no caminho para uma convivência mais criativa e integrada, que, devidamente ampliada, nos permite uma percepção aguda e profunda deste poema épico. Tendo o símbolo de Gandhari como centro de nossa abordagem, vemos que dentro do desenvolvimento da cultura ela representa a manutenção do status quo pela negação de uma mulher da sua inserção no mundo. Gandhari não percebe que submeter-se passivamente a uma limitação deste porte significa continuá-la, gerando, cada vez mais, situações destrutivas. A dificuldade em lidar com a deficiência não apenas impede ultrapassá-la, mas tende a perpetuá-la na medida em que não é elaborada. Sua cegueira se alastra, para se tornar o enredo do próprio épico na grande carnificina da batalha de Kurukshetra, que expressa a cegueira defensiva da sabedoria. De fato, a mensagem criativa central desta obra poética do hinduísmo, revela-se pela cegueira dos seus personagens. Podemos, deste modo, perceber aí um alerta, perguntando-nos quais as saídas para a espécie humana se optarmos pela alienação, se fecharmos os olhos para aquilo que existe em nós e naqueles que nos circundam.
Referências Bibliográficas
BYINGTON, Carlos A. B. (1996). Pedagogia Simbólica – A Construção Amorosa do Conhecimento de Ser. Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos – Record, 1996.
(2002). Inveja Criativa – O Resgate de uma Força Transformadora da Civilização. São Paulo: W11, 2002.
GUERRA, Maria Helena R. M. (1988). Encontro – Um Estudo sobre o Relacionamento Interpessoal Dialético enquanto Símbolo de Totalidade. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo,1988.
JUNG, Carl G. (1916). The Transcendent Function. CW 8. London: Routledge & Kegan Paul, 1960, pars. 131-219.
(1951). Aion. CW 9, part 1. London: Routledge & Kegan Paul, 1953.
O Mahābhārata. Adaptação teatral de Jean-Claude Carriere. Paris: Centre International de Creations Theatrales.
[…] (Para ler mais a respeito do amor, Clique Aqui!) […]
[…] “Onde o amor impera, não existe desejo de poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a […]
Os escritos de Maria Helena Guerra ampliam meus conhecimento de forma profunda .
Já conhecia e tive contatos com Carlos Byington .Como psicologa com enfoque em Jung e Byington, desejaria contatos de orientação com a autora Maria Helena Mandacaru Guerra. Como acessar este contato com ela ?
Oi Eloisa..
que bom que tem essas maravilhosas referências.
Você pode entrar em contato com a Maria Helena pelo email:
mhrmguerra@gmail.com
Abraços Fraternos,
Lino