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O Relacionamento Amoroso em sua Polaridade Pré e Metapessoal

Fragmentação X Resgate de um Símbolo

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Do ponto de vista junguiano, sabemos que vivemos sempre dentro da tensão criada pelos opostos, ao mesmo tempo em que somos impelidos a transcendê-los e unificá-los. A busca de síntese dá-se ao longo do processo de desenvolvimento da personalidade, tendo nos símbolos suas ferramentas essenciais, pois são eles os elementos capazes de unir as polaridades, estruturando assim a consciência. Existem tantos símbolos quantas forem as vivências humanas, já que tudo que aponta para além do óbvio pode ser considerado simbólico. Qualquer situação, qualquer coisa, qualquer pessoa, enfim, toda experiência humana pode ser vivenciada simbolicamente; portanto, nesta perspectiva, tudo é símbolo.

Dentre os infindáveis símbolos que estruturam a nossa consciência – tanto individual como coletiva – o amor é um dos que tem recebido bastante destaque em todas as épocas e lugares, seja na arte, na literatura, na religião, na filosofia, na mitologia e também na psicologia, para citar apenas alguns exemplos. As vivências amorosas são absolutamente inerentes à nossa espécie, pois nem sobreviveríamos se não fôssemos cuidados ao nascer. Mas obviamente o amor não é fundamental apenas para a estruturação da personalidade da criança; sua importância nos acompanha ao longo da vida, sendo ele muitas vezes responsável por tristezas ou alegrias profundas, por vivências terríveis ou maravilhosas, podendo nos trazer a vida ou a morte.

Sem ter a menor pretensão de circunscrever, delimitar, reduzir ou mesmo explicar a relação amorosa – o que, além de impossível, a descaracterizaria naquilo que tem de misterioso –, gostaria de me aproximar de duas das inumeráveis polaridades que podem vir a compô-la. Mas antes é preciso ficar claro que estarei me referindo à relação amorosa entre o par, e não, por exemplo, à relação parental ou fraterna. Também quero frisar que abordarei polaridades que, embora nem sempre apareçam nos relacionamentos amorosos com a intensidade e magnitude aqui descritas, estão não apenas presentes nas experiências de indivíduos, mas encontramos suas marcas também em nossa cultura.

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Abordarei aqui as dimensões pré-pessoal e metapessoal do relacionamento amoroso. Mas antes alguns esclarecimentos precisam ser feitos. Etimologicamente o prefixo grego “meta” significa o que está além. Buscando uma coerência, quis usar o prefixo grego para o outro polo, para aquilo que está aquém do pessoal. Mas o oposto de “meta” é “ante”, prefixo que foneticamente poderia ser confundido com o prefixo latino “anti”, cujo significado – em oposição a, contrário a – não se aplica àquilo que quero abordar. Optei, portanto, por usar o prefixo “pré” para me referir às experiências relativas à dimensão que considero “aquém do pessoal”. Gostaria ainda de salientar que ao propor uma terminologia para o que está “além” e o que está “aquém” do pessoal não estou pretendendo promover nenhum tipo de julgamento de valor, mas sim localizar estas vivências num tipo de espectro, do mesmo modo como numa escala cromática temos o ultravioleta e o infravermelho.

Tanto a relação metapessoal como a pré-pessoal têm em comum a busca de relacionamentos que não são primordialmente pessoais, ou seja, o que importa não é o interpessoal, não é quem é o Outro, mas para onde este Outro conduz, que vivências ele mobiliza. Neste sentido, são experiências predominantemente introvertidas e de cunho altamente simbólico, pois apontam para algo além do imediato, além do óbvio.

Comecemos pelo relacionamento metapessoal. Nesta polaridade, a relação interpessoal funciona como um veículo para se chegar ao sobrepessoal, à transcendência, ao amor pelo divino, ao amor de devoção, à compaixão. Na busca da dimensão transcendente, o Outro é aquele que serve de ponte, é o intermediário que permite ao Eu a vivência de um estado extático e, enquanto símbolo mobilizador da vivência, este Outro não pode ser separado da divindade mesma. Isto é colocado por Daniélou (1991) da seguinte forma: “qualquer objeto, qualquer criatura viva, qualquer ação, qualquer qualidade, podem ser tomados como a imagem da divindade e adorada como tal” (p. 367).

Numa relação de amor metapessoal, o Outro nos revela o Absoluto. Tat tvam asi – tu (o ser vivo) és a forma visível Daquilo (a essência suprema) –, diz o Ganapati Upanisad (in Daniélou, p. 293).

Evidentemente, qualquer vivência que aponte para a transcendência não pode ser completamente circunscrita sem ser esvaziada e banalizada. Uma experiência que nos leva à transcendência produz o efeito da “transdescendência” – termo empregado por Boff (2000) –, que é o retorno para dentro de nós mesmos, para nosso interior mais profundo. Uma vivência de tal ordem nos impõe uma abordagem simbólica, intuitiva, aberta e capaz de tocar outros símbolos que, reverberando em nossa psique, vão ampliando nossa consciência sem que a experiência original seja subjugada à compreensão puramente racional.

Em termos fenomenológicos, a relação metapessoal possui com frequência algumas características. Há, antes de mais nada, a busca de transcendência, que se expressa num impulso fortíssimo, arrebatador, incontrolável, compulsório, de união com o Outro. As pessoas envolvidas nesta experiência, neste momento “não têm escolha”, o que significa que o ego não tem o controle completo da situação. Sentem uma premência, um ímpeto intenso, um desejo imenso de união: união física, anímica e espiritual. É algo imperioso que clama pelo Todo, pela vivência de plenitude, de completude. Esta exigência de realização plena do espírito na matéria não mede esforços para transpor obstáculos; nada parece ser impedimento na busca de vivenciar a transcendência.

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Embora muito próximas das descrições de experiências místicas, estas vivências nos confundem porque não são, ao menos à primeira vista, direcionadas à divindade. Se San Juan de la Cruz e Santa Teresa de Ávila exemplificam em seu êxtase místico a ânsia pela união com Cristo, as bacantes se reconheciam intoxicadas por Dioniso, as Gopis enfrentam qualquer restrição, transpõem qualquer interdição, por amor a Krishna, aqui temos pessoas comuns enredadas nesta mesma dinâmica devocional, extática, sem no entanto – pelo menos na maior parte das vezes – saberem o sentido daquilo que está acontecendo.

O fato de esta experiência ser tão intensa, mobilizadora, e até mesmo avassaladora, indica que uma grande dose de material inconsciente invadiu a consciência. Estamos diante do numinoso, daquele mistério tremendo e fascinante descrito por Rudolf Otto em O Sagrado. Evidentemente, uma experiência desta magnitude abre um campo vastíssimo para as projeções.

O fenômeno da projeção é amplamente estudado e não necessita ser explorado aqui. O que me parece digno de menção é a necessidade extrema da não identificação com a projeção, da discriminação entre o pessoal e aquilo que está para além do pessoal. Isto é muito difícil numa relação metapessoal devido à pujança dos símbolos que daí emergem, frutos da ativação de dinamismos inconscientes muito profundos.

A mobilização desta energia arquetípica é algo muito poderoso, e quando isto ocorre as pessoas envolvidas parecem ser sugadas por um redemoinho que as faz girar e girar e girar. Isto produz um estado alterado de consciência, com consequente abalo do equilíbrio da personalidade.

Como se pode depreender, este nível de experiência envolve certos riscos, podendo mesmo ser muito destrutivo, pois a quantidade de energia ativada é de tal ordem que um ego não suficientemente fortalecido corre o risco de se fragmentar. Também a não elaboração destas vivências em sua dimensão simbólica, o não reconhecimento de seu sentido mais profundo, podem levar a conflitos e crises mais sérias.

Outro risco é que haja uma exclusividade de adesão ao objeto amado, isto é, que surja um tipo de fanatismo que impede a entrada no campo psíquico de quaisquer outras dimensões de vida. Parece que fora deste relacionamento não há qualquer possibilidade de felicidade, troca, crescimento, completude. O amor funciona, então, em sua dimensão sombria: como elemento que aprisiona e limita.

Já foi mencionada a importância da retirada de projeções. Este processo também é bastante delicado, pois a energia projetada no Outro é tamanha que a pessoa pode sentir a ameaça de cair num “buraco negro”, num grande vazio, ao ser privada do alvo de projeção.

É importante reafirmar ser imprescindível a conscientização da dimensão simbólica contida nesta vivência, já que esta consciência é que será capaz de apreender (intuir), não obstante o grau de envolvimento e mobilização, o objeto que se encontra encoberto pela imagem que recebe a projeção. Se o relacionamento tem um caráter predominantemente metapessoal, então a energia por ele ativada aponta para algo além do pessoal, para aquelas camadas mais profundas da psique. Reconhecer a participação do Outro (e também do Eu) como instrumento para o desenvolvimento da capacidade de amar é fundamental para elaborar as vivências decorrentes deste tipo de relacionamento.

De acordo com Hillman (s/d), “para compreendermos os sentimentos […] temos de partir […] dos teólogos e místicos […]” (p.113), e ele acrescenta mais adiante: “o estudo do sentimento nos leva para fora dos limites da psicologia” (p. 118). Por ser a relação metapessoal uma relação que se abre para o transcendente, e por ser este um assunto com o qual se ocupam as religiões, encontramos nelas certas indicações que podem ajudar a diminuir os riscos inerentes a este relacionamento.

Através de seus ritos, as religiões nos mostram que experiências iniciáticas (e também assim podemos considerar as relações metapessoais) devem ocorrer em um local consagrado, que favoreça o encontro com o transcendente. O temenos, o lugar sagrado, podia ser uma caverna, um templo, as florestas por onde corriam as mênades tomadas pela loucura divina ou os bosques de Vrindavam, onde Krishna dançava e amava as Gopis. Mas o espaço era – ou se tornava – sacralizado. Em nossa linguagem moderna, estes são espaços que favorecem uma abertura para a dimensão simbólica.

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É esta abertura para o simbólico e a capacidade de o ego integrar esta dimensão que permitirão não apenas a elaboração do relacionamento metapessoal, mas também a preservação da integridade das pessoas nele envolvidas.

Obviamente, para as pessoas que vivem a dimensão de sacralidade na vida cotidiana todo espaço é consagrado e, portanto, o estabelecimento de um espaço delimitado, além de ser algo desnecessário, será também arbitrário e artificial. No entanto, para a maior parte das pessoas, esta distinção é fundamental, pois cria uma condição preservada e de continência que facilita o vivenciar da liberdade interna necessária a um aprofundamento em si mesmo através do amor pelo Outro.

Atribuo ao relacionamento metapessoal não apenas uma necessidade pessoal de busca de transcendência, mas considero ser esta a necessidade de uma época. O espírito da época sempre encontra receptáculos por meio dos quais se faz revelar. Algumas pessoas parecem funcionar como porta-vozes de um anseio que está além do individual, expressando em suas experiências íntimas e aparentemente mais pessoais uma necessidade que também é do coletivo.

Nunca o mundo esteve tão integrado em termos de comunicação/globalização e ao mesmo tempo tão fragmentado e dissociado pela ausência de amor ao próximo e compaixão.

Sob esta perspectiva, o relacionamento metapessoal emerge como função compensatória, propondo o desenvolvimento de nosso nível de consciência no que se refere à capacidade de amar, mais precisamente à capacidade de desenvolver um amor metapessoal, um amor pleno, incondicional, absoluto, solidário, capaz de ultrapassar os limites dos relacionamentos pessoais e de se abrir para o impessoal, para o Universo, para o transcendente.

A experiência da relação metapessoal nos abre para a consciência metafísica de que o eu e o outro somos um, e de que “nossa verdadeira realidade reside em nossa identidade e unidade com a vida total” (Campbell, 1990, p. 118). Este relacionamento, ao fornecer um caminho que nos ajuda a ampliar nossa capacidade de amar, nos faz realizar que “o amor de Deus impregna todo o Universo, até as mais fundas cavernas do inferno” (idem). Podemos então acolher amorosamente a doença, a loucura, a dor, e isto nos ajuda a transformar a paixão em compaixão, “este principio curativo que torna a vida possível” (idem).

Um dado inequívoco que se impõe ao pensarmos no relacionamento metapessoal é constatarmos que esta vivência se refere apenas a uma polaridade, à qual se contrapõe a dimensão pré-pessoal do amor.

Por “pré-pessoal” entendo aquelas experiências em que a relação com o Outro tem sua expressão básica no instinto de vida, mas em função de necessidades primárias não elaboradas, fixadas, e que surgem agora numa busca de sexualidade, de aconchego, de intimidade, de acolhida que, por serem tão urgentes e fundamentais, prescindem da dimensão pessoal do Outro. Estas relações, às quais chamo pré-pessoais, baseiam-se na busca do Outro pelo que ele pode oferecer em seu caráter humano mais fundamental, e ao mesmo tempo mais geral, porque dizem respeito à satisfação daquilo que é mais primário – é como se pensássemos numa criança que necessita do leite materno e que não se encontra em condição de escolher de que seio vem o leite, importando sim ser alimentada e satisfeita naquilo que para ela é a diferença entre a vida e a morte.

Neste sentido, a relação pré-pessoal traz ao ser humano sua dimensão mais “animal”, mais instintiva, mais primordial, que nos conecta àquilo que Linda Fierz-David 1990) descreve tão bem sobre nossa natureza mais profunda. Diz ela:

O feminino não é o primitivo, pois o primitivo contém uma relativa dose de consciência e de desenvolvimento; é, antes, o não-humano e não-espiritual. O que amedronta é que essa não-espiritualidade, essa não-humanidade é, apesar de tudo, fonte de experiência humana, semelhante a uma fera antiga e preguiçosa que vem observando o homem há milhares de anos e agora sabe de tudo, muito antes que ocorra. […] (o feminino) é estabilidade inabalável e colapso aterrorizante. Exprime-se na necessidade sexual, na adaptabilidade dos instintos, nas emoções destruidoras e, devido à sua caprichosa incontrolabilidade, numa sabedoria verdadeiramente demoníaca. (in Whitmont, p.155)

Não é difícil, portanto, constatar que as relações pré-pessoais ocorrem principalmente sob a égide do Arquétipo Matriarcal. Muitas vezes, quando se trata de se sentir vivo, ou de aplacar angústias terríveis, é a estas relações que recorremos, movidos pelo aspecto mais indiferenciado de nosso ser, mas também por um impulso profundo e verdadeiro, ainda que nem sempre consciente, que visa a elaboração dessas vivências – o instinto de individuação. Nas nossas defesas, nas nossas atuações, no nosso sofrimento está também a força para ultrapassar e elaborar nossas dificuldades.

Se estas vivências aquém do pessoal podem ser vistas e sentidas como experiências extremas, radicais, limites, assim também ocorre com aquelas além do pessoal. Se uma nos coloca ante o que temos de mais carnal, a outra nos faz deparar com o que temos de mais espiritual. Uma nos traz a vivência do amor como necessidade de sobrevivência, como instinto de vida; a outra nos faz deparar com o amor em sua dimensão de espírito encarnado, que busca satisfazer a profunda necessidade humana de conexão com o Todo, numa vivência de êxtase e transcendência. Se a primeira está enraizada, sobretudo no Arquétipo Matriarcal, a última está fundamentalmente inserida no Arquétipo da Totalidade.

Estaríamos, no entanto, nos atendo a uma visão superficial e ingênua se compreendêssemos estes dois polos como excludentes entre si. Na verdade, esta exclusão repetiria a grande cisão que encontramos no ocidente, a qual, ao separar corpo e espírito, dessacraliza a natureza, conduzindo a dimensão do divino para um reino distante da Terra, da vida cotidiana e do corpo de cada um. Esta dicotomia criou feridas profundas, sobretudo na forma de lidarmos com o dinamismo feminino, sobre o qual recaiu uma cisão de difícil reconciliação tanto a nível pessoal como cultural, qual seja, a polarização entre a imagem da santa e da prostituta.

Assim, ao vivenciarmos as relações pré e metapessoais, vemos que nossa humanidade mais profunda se exerce na tensão entre o que temos de mais animal e também mais divino. A interação entre estas polaridades coloca-nos diante do mistério profundo do início e do fim, da luz e da sombra, e nos revela que ambas são expressões de uma única coisa, de um ciclo no qual o começo leva a um fim que leva a um recomeço. Conjugar estes polos nos aproxima do mistério da vida, da morte e do renascimento, e nos ensina que o sagrado se expressa na matéria e, talvez como em nenhum outro lugar, no corpo[1].

Possivelmente, um dos grandes ensinamentos do Mito Cristão é que ele se expressa através de um deus feito homem, indicando que a encarnação é o local para a realização do sagrado. É na vida, nas relações, no corpo, que o divino pode ser conhecido.

Infelizmente, este mito, que nos traz tantos ensinamentos, foi deturpado por um viés cultural que o patriarcalizou. Este tema foi muito abordado por Byington em diversos de seus escritos, o que torna desnecessário o aprofundamento aqui desta questão. Quero me deter, no entanto, na polaridade santa e prostituta, expressa no mito por Maria e Madalena.

Em seu artigo “Amar e Conhecer. Um Estudo da Transferência Erótica pela Psicologia Simbólica”, Byington (1989) resgata a figura de Madalena, a prostituta redimida, como a dimensão erótica que deve ser conjugada a Cristo. Ele aponta também para a problemática do incesto, que faz com que Cristo seja frequentemente representado como criança ou, então, morto na cruz ou nos braços da mãe. Ainda que esta análise seja importante por mostrar a equiparação feita pelo viés patriarcal entre amor erótico e Sombra, e por lançar luz à dimensão erótica, a dicotomia entre Maria e Madalena continua existindo, ainda que agora a dimensão erótica tenha sido resgatada. Não se trata de confundir a Mãe com a Anima, mas de mostrar que, embora a dimensão erótica do mito tenha sido recuperada, ela não foi conjugada à dimensão sagrada do feminino, que permanece atrelada à figura de Maria.

Madalena é a que tem experiências sensoriais, físicas, sexuais, concretas. Mas seu corpo não expressa somente a sexualidade ou o erotismo profanos. Há algo de sagrado nisso, inclusive quando seu corpo é usado para lavar os pés de Jesus com suas lágrimas e enxugá-los com seus cabelos, iniciando-o no mistério que mais tarde originaria a cerimônia do Lava-pés. É esta dimensão de sacralidade frente àquilo que pode ser o mais profano que perderemos se nos mantivermos no viés que nossa cultura vem nos impondo.

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Nos meios junguianos costuma-se dizer que nada é por acaso. Em se tratando de um mito, isto certamente é uma verdade incontestável. É importantíssimo, portanto, que nos detenhamos no significado da escolha de uma prostituta para ser a discípula predileta de Jesus. Evidentemente não faltarão pessoas que verão neste símbolo a expressão do amor universal de Jesus, capaz de perdoar até mesmo os mais pecadores, os mais vis, os mais sujos – identificando mais uma vez Madalena com a Sombra. Esta visão, porém, não apontaria para uma síntese, mas referendaria a cisão que abriu tantas feridas na alma humana. Creio que estas feridas poderão começar a ser cicatrizadas se abrirmos espaço para perceber que Madalena simboliza a capacidade de se ter a vivência do sagrado a partir daquilo que a visão patriarcal considerou abjeto e degradante, especialmente, mas não só, a sexualidade. Portanto, embora conjugar o símbolo de Madalena ao de Cristo seja muito importante, é imprescindível que ele, o símbolo de Madalena, seja conjugado também ao símbolo de Maria, a mulher em quem nossa cultura depositou o que há de mais elevado e nobre em termos de amor e espiritualidade.

Maria chega até nós como imaculada, aquela que se abstém fisicamente da dimensão erótica e sexual. Ao mesmo tempo simboliza a alma que anseia pelo espírito, pela transcendência. Cabem aqui algumas considerações. A primeira, e mais evidente, é a associação entre a virgindade e integridade. Ainda que esta associação tenha sido estabelecida muito provavelmente em função da realidade física, cujo frequente rompimento do hímen na primeira relação sexual faz com que a mulher “não fique inteira”, esta analogia por si só aponta para a separação entre corpo e psique, atribuindo maior integridade à ausência de experiência e à ingenuidade do que à vivência e ao conhecimento. É como se não conhecer fosse equivalente a permanecer íntegro; como se a relação com o Outro, ao invés de acrescentar, tirasse algo – coisa que até mesmo na realidade corporal revela-se equivocada, visto que muitas vezes o contato com o outro traz concretamente uma vida nova, expressa pela gravidez.

Permanecer na contraposição óbvia entre as figuras de Madalena e de Maria, no que se refere às vivências físicas, corporais, sexuais, pode dificultar qualquer tentativa de síntese entre estes dois dinamismos. Se, no entanto, nos aprofundarmos no símbolo de Maria, não poderemos deixar de nos assombrar diante da capacidade de esta mulher encarnar um espírito da magnitude daquele ao qual ela deu à luz. E nos perguntaremos: o que significa, em termos de processo de desenvolvimento, dar à luz ao espírito? Que integridade não teria esta mulher? Com certeza, não a integridade ingênua daquele que não tem experiência, mas a integridade daquele que mergulha em si mesmo e busca sua realização a partir da profundidade de seu ser. Maria é a mulher apta a gerar aquele espírito que não somente traz a vida, mas que precisa enfrentar a morte para poder renascer. Ela encarna a capacidade humana de vivenciar plenamente e suportar o sofrimento, e assim conhece a escuridão, a noite escura da alma. A dor é um veículo que nos aferra ao mundo, do qual, em momentos de extrema aflição, angústia, desespero, muitas vezes queremos nos livrar. Certamente a dor de Maria a traz para o mundo. E, possivelmente, é através dela que Maria vai exercitando sua capacidade de amar.

Mas não é apenas no sofrimento que vemos a dimensão terrena de Maria. Walker, em The Woman’s Encyclopedia of Myths and Secret, traz alguns elementos bastante interessantes a respeito de Maria, e as citações a seguir foram retiradas daí. Identificada com deusas pagãs, Maria foi vista como “rainha do céu, imperadora do inferno, senhora de todo o mundo” (p. 603). Segundo o Speculum beatae Mariae, Maria foi comparada à trindade Juno-Ártemis-Hécate: “rainha do céu, onde está entronada no meio dos anjos; rainha da terra, onde constantemente manifesta seu poder; e rainha do inferno, onde tem autoridade sobre os demônios” (idem).

”Ambrósio chamou Maria de o ‘templo’ de Deus, e ‘apenas aquele que trabalhou dentro do templo é para ser adorado'” (idem). Ora, ainda que tendo a intenção de diminuir a importância de Maria, Ambrósio afirma ser ela o “templo” de Deus, isto é, Deus habita seu corpo, aí reside a divindade – às avessas, ele nos mostra a sacralidade do corpo!

Maria é também considerada a padroeira das prostitutas. A compaixão, uma de suas virtudes, era também a virtude das prostitutas sagradas (p. 608).

Aquilo que a princípio parecia incompatível está unido nas profundezas da psique. O amor em uma de suas expressões maiores, a compaixão, aparece unificando polaridades aparentemente excludentes. É importante percebermos que a compaixão é um sentimento subjacente à vivência não pessoal, visto que aponta para tudo e todos. Na imagem da prostituta sagrada, neste símbolo de profundo significado, encontramos a união entre corpo e espírito, entre sexualidade e transcendência, entre pré e metapessoal.

Voltemos a Madalena. É a ela que Cristo aparece depois da ressurreição. Aquela cujo caminho passa pela intensa vivência física, sexual, é a primeira que tem olhos para ver o espírito. Maria, por outro lado, ascende aos céus com seu corpo, numa expressão simbólica da sacralização da matéria.

É a visão dicotomizada, própria do Arquétipo Patriarcal, que, ao excluir da vida, da natureza, das experiências, seu significado profundo, estabelece uma distinção rígida entre o corpo e o espírito, entre o sagrado e profano, o puro e o impuro. No entanto, se nos abrirmos para a dimensão simbólica, reencontraremos a unidade por trás de cada pequena coisa, do mais insignificante, do mais obscuro, do mais pecaminoso, do mais feio, pois tudo faz parte do fenômeno da vida, tudo pode ser sagrado, tudo faz parte do grande mistério.

Se considerarmos o Mito Cristão como fundamental à estruturação da consciência ocidental no padrão de alteridade, compreenderemos por que é tão difícil elaborar este padrão de funcionamento: a expressão profunda do dinamismo feminino aparece bipartida neste mito. Creio ser esta uma grande contribuição às dificuldades que homens e mulheres encontram na elaboração de vivências mais profundas, pois esta divisão fomenta cisões como aquelas entre a santa e a prostituta, a esposa bem comportada e Lilith, a sexualidade e o amor. E, evidentemente, a fixação em qualquer um dos polos leva à patologia; permanecer na promiscuidade é tão nocivo ao crescimento quanto permanecer inflado pelo espírito, ainda que este polo seja mais “confortável”, já que é mais aceito em termos morais do que o outro.

Para aqueles que buscam um caminho de crescimento na relação dialética, a conjugação dos polos representados por Madalena e Maria faz-se fundamental. Enquanto estas imagens não forem unificadas, enquanto não puderem ser reconciliadas e vistas como expressão de valores fundamentais, que nos ensinam que a dimensão erótica e sexual é também sagrada e espiritual, continuaremos afastados não apenas de nós mesmos, mas do Outro, o que nos impedirá uma realização plena da alteridade.

Não temos, no Ocidente, uma imagem que expresse a dimensão sagrada da sexualidade. Necessitamos, assim, recorrer à díade formada por Maria e Madalena, buscando nesta reunião a unificação de duas das grandes dimensões do amor: o amor incondicional e o amor erótico, síntese esta, sem dúvida, bastante difícil de ser elaborada. Enquanto no Ocidente esta união é expressa através da dualidade, na Índia encontramos esta dualidade expressa na unidade através da figura de Rādhā.

Rādhā é a pastora favorita de Krishna, e o ama profundamente. Em seus comentários sobre Rādhā, Hein (1982) diz que ela é “uma revelação daquilo que está no coração do Universo, no centro do ser onde nossa existência culmina e a vida é mais real” (p.117). Mais adiante, falando sobre seu culto, chama nossa atenção para o fato de Rādhā não ser Mãe; tampouco é boa ou má. Não é matriz da vida vegetal, nem patrona da fertilidade, germinação e crescimento. Sua aproximação cúltica não visa controlar tragédias naturais, nem é um esforço para domesticar uma tragédia na vida emocional. Também é difícil ver nela uma “cosmologização” das virtudes da mulher. Não é também um modelo de propriedade sexual. Rādhā é um modelo apenas em sua apaixonada, persistente e total dedicação a seu amado. Representa a divinização do amor erótico, uma aceitação positiva profunda da sexualidade.

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Seus atributos não são, então, qualidades metafísicas, mas a intensidade e pureza de seu amor. Ao contrário de Maria, a sacralidade de Rādhā “não está basicamente num status elevado, numa posição que transcende o meramente humano por meio de uma diferença ontológica. Sua natureza divina repousa antes numa exaltação e transfiguração de algumas das mais básicas e arquetípicas emoções humanas.” (Wulff, 1996, pp.130-131).

Algo bastante interessante a respeito de Rādhā é que houve uma grande discussão entre teólogos, filósofos e estudiosos dos textos sagrados para que se chegasse a um acordo a respeito de sua relação com Krishna. A questão discutida era saber se Rādhā era Parakiya ou Svakiya. Parakiya significa amar sem ter laços maritais, é o amor entre amantes, enquanto Svakiya envolve a relação marital. Esta discussão durou alguns meses, e por fim concluiu-se ser ela Parakiya, pois tem com Krishna uma relação de amante. Isto implica numa relação em que não há nenhum tipo de compromisso ou obrigatoriedade formal ou legal entre eles. A união ocorre baseada apenas no amor, pois são livres para escolher estarem juntos ou não. E mais: diz-se, inclusive, que Radha era casada com outro homem. Assim, o impedimento, as restrições, as incertezas, o proibido, as quebras das regras, as transgressões, tudo faz com que as emoções e o próprio amor sejam intensificados. Rādhā expressa, então, a alma que não se detém ante nenhum obstáculo, que enfrenta qualquer impedimento, para ir ao encontro da divindade. Revela a natureza e a intensidade do amor que abre caminho em meio às maiores adversidades para conseguir chegar à sua realização, à vivência do Todo, da essência, da transcendência.

Krishna e Rādhā simbolizam o amor em toda a sua plenitude ao se unirem física, emocional e espiritualmente. Representam o processo de desenvolvimento psicológico que conduzirá à não distinção entre nossa existência física e nossa existência espiritual. Segundo Dasgupta, em algumas tradições Rādhā e Krishna são vistos não como deidades a serem adoradas, mas representam princípios a serem realizados na humanidade.

Temos assim, na figura destes dois deuses, elementos bastante novos para o Ocidente. São deuses que incluem a dimensão erótica, sexual, como uma expressão, ou mais ainda, como a melhor expressão da vivência de transcendência. Não há a projeção da Sombra sobre o corpo, sobre a sexualidade; não há uma cisão entre amor e sexo, entre corpo e espírito, entre sagrado e profano. A ausência de fixações em estruturas defensivas tanto a nível patriarcal como matriarcal faz de Rādhā e Krishna, por excelência, um símbolo da relação amorosa dentro do padrão de alteridade.

Não há, de nenhuma parte, qualquer reação defensiva que impeça o encontro. Rādhā e Krishna transitam pelas polaridades liberdade-compromisso, espontaneidade-constância, união-separação, numa relação amorosa não convencional, íntima e não hierárquica, e que expressa aquilo que Jung chamou de mysterium coniunctionis.

Rādhā, a pastora capaz de conciliar “o mais baixo e o mais alto”, apta a vivenciar a espiritualidade através do amor erótico, sintetiza aquilo que o Ocidente ainda não conseguiu unir e que, como vimos, está simbolizado parte em Madalena, parte em Maria.

Na união entre Krishna e Rādhā a Índia nos mostra a possibilidade de uma relação dialética entre as polaridades, vivência de difícil elaboração, mas fundamental para o de­senvolvimento da personalidade e da cultura dentro do dinamismo de alteridade.

* Texto originalmente publicado na revista Jung e Corpo, nº01, 2001.

Referências Bibliográficas 

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[1] “Aquilo que não está no corpo não está no mundo”, diz uma máxima tântrica.

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