UM CONVITE À LEITURA – CAIO LIUDVIK
Ao contrário do que esperavam críticos iluministas como Freud, a religião não dá sinais de estar ficando para trás – derrotada pelo “progresso” da história e da racionalidade– enquanto força capaz de impactar a vida de indivíduos e sociedades.
A despeito das incertezas e crises contemporâneas, ou também por causa delas, diversas vias de buscar transcendência mostram apelo como fontes de significação e de esperança para lidar com os terrores e mistérios da existência.
Além dos sistemas religiosos propriamente ditos, vemos também ganhar força alternativas como a psicologia junguiana.
Embora Carl Gustav Jung sempre tenha insistido em se dizer cientista, suas ideias sobre arquétipos, inconsciente coletivo, sincronicidade dialogam com a dimensão do sagrado de maneiras que atraem muita gente sensível à espiritualidade, mas que não se sentiria à vontade debaixo da tutela de religiões institucionalizadas.
Em O Zaratustra de Nietzsche, seminário que ministrou no Clube Psicológico de Zurique entre 1934 e 1939, Jung mostra, porém, que a sua doutrina não pretende ser uma forma de anestesia e escapismo.
Ele ousa ali chamar para uma extensa conversa ninguém menos do que um dos arautos filosóficos do desmoronamento geral dos valores morais e metafísicos que sustentaram a identidade ocidental por séculos.
O Confronto
Assistimos a um “confronto” no sentido alemão da palavra Auseinandersetzung, em que a explicitação das diferenças é o que paradoxalmente abre os dois polos ao crescimento conjunto e à afinidade surpreendente.
Tanto o Jung quanto o Nietzsche que julgávamos conhecer saem transformados por este confronto.
E nos ajudam a pensar mais a fundo, tanto em nossa intimidade psíquica quanto nos acontecimentos externos, o que significa a busca do sentido da vida em um mundo aparentemente em colapso.
Assim como hoje, na década de 1930, em que se dá o monumental Seminário (de mais de 1500 páginas ao total) o cheiro da catástrofe estava no ar.
Assim Falava Zaratustra
Não por acaso os alunos de Jung pediram-lhe que, após o Seminário recém-encerrado sobre as visões de uma pintora norte-americana , o grupo se debruçasse sobre os labirintos de Assim falava Zaratustra (1883-5), obra literária e filosófica perpassada pelo sentimento visionário de que a humanidade passava por uma ampla transição não sem graves riscos para sua sobrevivência.
Zaratustra, também conhecido como Zoroastro, fora um profeta da Pérsia (atual Irã) do século VII a. C., com um papel fundamental na história das religiões por ter introduzido, com uma radicalidade inédita, a percepção de que o mundo seria determinado por um grande conflito entre Bem e Mal.
Sua doutrina também pregava a ideia de uma História linear na qual os justos podiam contar com recompensas além-vida pelas suas virtudes.
Nesses dois aspectos, o zoroastrismo pode ser considerado o precursor do cristianismo que Nietzsche, filho de pastor (como Jung) veio a eleger como seu maior adversário intelectual.
O Eterno Retorno
Daí porque o filósofo alemão (1844-1900) recria este mito ao imaginar um novo Zaratustra que vem anunciar justamente o oposto do que o antigo: por um lado, o caráter ilusório e violentamente forjado desse maniqueísmo moral – tema de outras obras dele, como Para além de bem e mal e Para a genealogia da moral; por outro lado, a dimensão não-linear, mas sim cíclica, e sem quaisquer perspectivas de “redenção” além-vida, do tempo: o Eterno Retorno.
Na série de sermões que compõem Assim falava Zaratustra, Nietzsche discorre também sobre outras de suas célebres teses, como a “morte de Deus” – o colapso das condições de credibilidade dos dogmas judaico-cristãos – e o Übermensch (super-homem ou além-do-homem), como tipo antropológico capaz de superar o impacto das desilusões niilistas, inventar seus próprios valores – o “tu deves” dando lugar ao “eu quero” – e transformar a vida em uma obra de arte.
Mais do que a veracidade intrínseca dessas ou de outras proposições, em um nível puramente intelectual, Jung se indaga sobre suas raízes e efeitos para a vida, para o inconsciente, em especial, para o inconsciente coletivo.
Não se trata de um “estudo de caso” clínico que mergulhe nos meandros da trajetória do indivíduo Nietzsche, mas de uma prospecção do que essa trajetória, e sobretudo essa obra, tem a ensinar em termos gerais.
Jung tampouco oferece um estudo acadêmico convencional, mas sim, ainda que numa escala de complexidade e tamanho incomparável, um “comentário psicológico” do gênero que também dedicou a textos alquímicos e orientais, por exemplo.
Um tipo de texto em que podemos ver muito de sua própria psicologia mesmo quando ele aparenta tratar de um objeto cultural alheio – quase como uma “interpretação subjetiva”, para evocarmos um dos princípios da análise junguiana dos sonhos.
Um Estado de “Inspiração”
E, de fato, Jung considera que o Zaratustra tem muitas afinidades com produções espontâneas do inconsciente, tais como sonhos e visões.
Para validar essa abordagem, ele várias vezes retoma declarações de Nietzsche sobre o estado alterado de consciência em que teria criado a obra. Um estado de “inspiração” ou, em linguagem junguiana, de “possessão” arquetípica.
Por exemplo, num determinado poema Nietzsche disse: “Então um se tornou dois e Zaratustra passou junto a mim”: isso indica, diz Jung, que “Zaratustra, então, se tornou manifesto como uma segunda personalidade”, no caso, Zaratustra como avatar do arquétipo do Velho Sábio, um pouco à maneira como o próprio Jung, em suas Memórias, sonhos, reflexões, diz ter sempre convivido com uma “personalidade número 2”, o si-mesmo, núcleo e totalidade da psique individual, para além dos limites do eu.
Uma Mentalidade Materialista
O problema de Nietzsche, porém, foi ter se apegado a uma mentalidade materialista (prevalecente nos meios eruditos do fim do século XX) que lhe dificultou manter as devidas distâncias entre sua identidade egóica e a potência avassaladora dos arquétipos a que sua sensibilidade extraordinária o expôs.
Isso acarretou um estado de “inflação” que permeia já o Zaratustra e que, poucos anos depois, teria consumado a psicose que deu fim à vida lúcida do filósofo.
Jung desde muito cedo se sentiu atraído pela obra e personalidade de Nietzsche, mas também temia ser “como ele”, isto é, ter a mesma propensão à loucura. Essa ambiguidade se nota ao longo das palestras.
Há momentos de grande admiração por Nietzsche como um grande artista e mesmo “psicólogo” – por exemplo, quando ressalta o valor do corpo e dos afetos, na contramão do intelectualismo tradicional dos filósofos.
Mas Jung também não se exime de apontar contradições entre o que Nietzsche pregou e viveu, quando não critica abertamente teses nietzschianas centrais, como a própria morte de Deus, que para Jung é uma declaração mórbida na medida em que induz a uma autodivinização humana que teve efeitos trágicos na psique do próprio Nietzsche bem como da Alemanha cujo espírito ele tão bem soube combater e espelhar.
Conforme o Seminário avança, e a Segunda Guerra Mundial se avizinha (e sua proximidade ajuda a explicar a interrupção das palestras antes de dar conta da totalidade do Zaratustra), vemos Jung ser cada vez mais duro nos paralelos que traça entre a experiência dionisíaca de Zaratustra e o delírio coletivo que toma de assalto não só a Alemanha nazista, sob as botas do deus pagão “Wotan” personificado nas vociferações de Hitler, mas um mundo cada vez mais militarizado (isso não nos soa familiar?).
Nietzsche, exposto ao inconsciente coletivo sem as mediações simbólicas que seu materialismo ateu lhe proibia, denunciava a era das massas e parecia estar sucumbindo a ela – isso nos lembra a crítica de Heidegger às inauditas cumplicidades da doutrina nietzschiana com o projeto de poder metafísico e tecnocrático ocidental.
Sintomas da “Inflação
Jung vê por toda parte sintomas da “inflação” nietzschiana, por exemplo quando o filósofo exalta o corpo como se fosse sinônimo do “si-mesmo”, a despeito de seus inúmeros sofrimentos físicos ao longo da vida (desde adolescente ele foi atormentado por variadas enfermidades, inclusive a sífilis, possível causa objetiva da loucura).
Para Jung, o corpo é um aspecto fundamental, mas não único, nossa essência. Seria preciso também resguardar os direitos dos fatores espirituais mais sutis, para os quais os símbolos religiosos milenares não deixam de ser excelente forma de figuração, a despeito das manipulações e desgastes a que estão sujeitos em culturas como a nossa.
Aqui há um eco das razões que levaram Jung a romper com a psicanálise freudiana, também ela marcada por certa “inflação” da sexualidade.
Quando, ainda no Prólogo do Zaratustra, o equilibrista cai do alto de sua corda e agoniza, o profeta o consola dizendo que podia deixar de lado seu medo de estar indo para o inferno: não existe inferno à espera, sua alma morreria ainda antes que seu corpo, diz àquele que se tornou o primeiro “convertido” à sua doutrina.
A “Morte da Alma Antes do Corpo”
Para Jung, essa foi uma antecipação inconsciente do destino do próprio Nietzsche: a sua loucura, que se estendeu por onze anos, veio a ser a “morte da alma antes do corpo”.
E mais: que a morte da alma antes da morte do corpo possa soar como consolo é um indicativo do quanto, para Nietzsche, a vida consciente já era uma tortura mesmo antes da psicose, dado o abissal isolamento a que ele quase sempre se sentiu condenado também por conta das dores do corpo.
Enfim
Não por acaso a narrativa da obra se encaminhar para um êxtase dionisíaco (a “festa do asno”, na quarta parte) que Jung não hesita em rebaixar a uma fantasia histérica de solução dos problemas via embriaguez extrovertida, em supercompensação inconsciente do forte viés introvertido do eu do filósofo.
Mas, por mais ácidas as críticas que aqui e ali assomam à superfície do discurso, elas em nenhum momento apagam o fascínio de Jung por um de seus maiores precursores.
O confronto é a maneira de depurar o que Nietzsche tem de supostamente equivocado, para que possa nos inspirar a ir mais fundo no nosso tornar-se o que somos, como ele diria.
É o pedágio da sombra na estrada na individuação.
Juntando-nos hoje, como leitores, à experiência “presencial” feita naqueles dias por pupilos de destaque como Toni Wolff, Barbara Hannah, Marie-Louise von Franz, podemos ver um Jung pondo em prática, em público e com vestes de professor, o que sua psicologia nos faz exercitar também na clínica e mesmo a sós; a jornada é ad astra per aspera, “por ásperos caminhos até os astros”.
Não foi o próprio Zaratustra quem ensinou que é preciso ter o caos dentro de si para dar à luz uma estrela dançante?