Às mulheres da Comunidade de Vila Dalva, por tudo que me ensinaram, minha gratidão.
Nos dois primeiros Congressos Latino Americanos de Psicologia Junguiana, muito foi dito a respeito da identidade cultural latino americana e de sua Sombra de atraso e subdesenvolvimento. Vieram à baila questões como cidadania, desrespeito aos direitos fundamentais, a desigualdade profunda que permeia a nossa população, e que, no caso do Brasil, configura uma das piores distribuições de renda do Planeta. Falou-se também sobre a Sombra sócio-econômica presente na população que vive à margem da sociedade, em condições precárias de moradia, saúde, educação, cultura, trabalho, convivendo com as mais diversas, intensas e desumanas expressões de violência.
Evidentemente, não foram esquecidas as nossas riquezas: nem as proporcionadas pela natureza, que nos presenteou com uma extraordinária biodiversidade, e nem tampouco aquelas contidas potencialmente na miscigenação étnica, que permite uma Consciência capaz de se abrir para o novo e abrigar o diferente.
Acredito muito pouco na possibilidade de mudanças efetivas acontecerem somente em decorrência de palavras, quando estas não são acompanhadas de uma ação que as tornem encarnadas. Por isso, busquei uma maneira de colocar em prática o que elaborei a partir de nossas discussões. Decidi realizar um trabalho comunitário voluntário, durante o qual pudesse dar alguma contribuição àquelas pessoas das quais tantas oportunidades são tiradas, e assim, simbolicamente, e numa escala ínfima, contribuir e reparar essa imensa defasagem social em que vivemos. Embora estivesse claro que meu campo de atuação seria dentro da Psicologia, não sabia exatamente como o trabalho iria se desenvolver – isso dependeria também da comunidade e do grupo no qual eu me inserisse.
Em minha busca, fiz contato com uma freira que trabalhava com exercícios corporais em grupos de mulheres da Comunidade de Vila Dalva, em São Paulo, e que se dispôs a me introduzir em um deles. Meu primeiro encontro aconteceu num dia em que estavam presentes no grupo ao redor de vinte mulheres. Quando fui apresentada como psicóloga, imediatamente começaram os pedidos de ajuda, que incluíam questões como aprender a ler, conseguir dirigir carro, resolver problemas com filhos, maridos e netos, dificuldades com a saúde, com o trabalho e para conseguir emprego. Naquele instante, vendo com absoluta clareza que a maior parte das pessoas buscava uma solução rápida e concreta, que eu não tinha capacidade de atender, e sabendo que não deveria dar a elas a impressão que eu poderia resolver esse tipo de problema, pensei em encerrar meu trabalho antes mesmo de começá-lo. Foi quando uma das participantes disse: -“eu tenho muitos pesadelos”. Nesse momento, uma enorme porta abriu-se diante de mim e intuí o que poderia oferecer a elas. Propus que trabalhássemos com seus sonhos. A idéia foi imediatamente aceita.
Característica e Funcionamento do Grupo
Solicitei às participantes do grupo que observassem os sonhos, procurassem lembrar deles e, quem se sentisse à vontade, os relatasse junto com vivências suas importantes, que poderiam também ser contadas a partir de um sonho trazido por outra pessoa. Frisei, sem acreditar muito na eficácia da recomendação, que o grupo mantivesse sigilo sobre confissões íntimas ali relatadas.
Ficou acertado que nos encontraríamos uma vez por semana, durante uma hora e meia, tempo que, com o desenrolar do trabalho, geralmente era prorrogado por meia hora ou mais. O grupo era constituído por mulheres de idades muito variadas. A mais jovem tinha 25 anos e a mais velha, 82. As reuniões aconteciam dentro de uma igreja católica, e eram organizadas pela freira. Embora o componente religioso fosse muito forte, a filiação religiosa institucional variava entre católicos, evangélicos e possivelmente outras mais. O número de participantes oscilava bastante, entre 3 e 30 pessoas, mas, em média, o grupo operava com oito a dez pessoas. A freqüência muito irregular era atribuída por elas às dificuldades existenciais mais variadas, como, por exemplo, familiares doentes, filhos e netos que exigiam cuidados especiais, admissão em emprego, mudança de cidade e até mesmo mortes. Algo que me pareceu também contribuir para a limitação da assiduidade foi a falta de hábito de receberem atenção e ajuda.
Este contexto impôs um enquadre completamente diferente daquele que tenho no consultório como psicoterapeuta. A maior parte dessas mulheres insere-se na população de baixíssima renda. Muitas são analfabetas ou semi-alfabetizadas, com histórias de privações e maus tratos. O ambiente onde vivem é bastante violento: assassinatos, drogas, roubos, AIDS, abandono, promiscuidade permeiam o dia-a-dia.
É preciso que se diga, no entanto, que essas mulheres, quase que unanimemente, a despeito de suas histórias de vida, são extremamente fortes, sobreviventes, muitas vezes, de experiências físicas e emocionais catastróficas, e capazes de, com maior ou menor sucesso, organizar sua vida e a da família. Poucas, porém, reconhecem seu valor e a legitimidade de seus desejos e necessidades. Nesse contexto, pareceu-me que abrir espaço para os sonhos foi abrir espaço para o reconhecimento e a legitimização de sua natureza mais profunda.
Apresentando os Sonhos
Durante o trabalho emergiu um fato marcante que era a noção prefixada dos significados dos símbolos dos sonhos, aos quais sempre eram atribuídos características premonitórias. Sonhar com açúcar significava morte. Sonhar com água, lágrima na certa; com dente, também morte. Ratificavam essas crenças com fatos ocorridos na comunidade, que mapeavam aleatoriamente. “Foi só eu sonhar com dente e um parente da minha vizinha morreu. Toda vez é isso.” Para muitas, os sonhos não tinham qualquer importância ou significado. Eram “só bobagem”, “cada coisa esquisita”, “coisa mais maluca…”
Sem saber exatamente se conseguiria transmitir a elas a importância dos significados oníricos, disse-lhes que os sonhos são produções originais, algo genuíno, uma mensagem que vinha da natureza de cada uma delas para elas mesmas e acrescentei que ninguém sonha o sonho do outro, ninguém sonha o que o outro quer que a gente sonhe – os sonhos são a confirmação de nossa existência, de nossa singularidade, de nossa importância como seres capazes de estabelecer uma identidade e desenvolver Consciência.
Para muitas daquelas mulheres, observar os sonhos passou a significar perceber que possuíam uma vida própria, íntima, autônoma, independente do grau de submissão a que estavam habituadas. Parece-me que o fato de termos estabelecido um vínculo transferencial positivo, de aquelas mulheres serem bastante receptivas e, creio eu, de não terem a defesa da intelectualização, adquirida pela “educação”, criou um ambiente favorável e aberto, que, apesar de tantas condições adversas, permitiu que nossos encontros se estendessem por dois anos.
Contando os Sonhos
O primeiro sonho trazido para o grupo foi o de uma senhora de 74 anos, que havia dito que “não conseguia juntar as letras”, e que gostaria de aprender a ler. Há seis meses ficara viúva de uma união que durara mais de 50 anos, e descreveu seu casamento como tendo sido feliz. O marido morrera de repente, e ela sentia muito sua falta. Trouxe para o grupo um sonho no qual estava com o marido e uma filha. Ele “estava mole” (sic), isto é, vivo. Admira-se por ele estar lá. “Você não tinha morrido?”, pergunta. Ele diz que sim, e mostra a ela onde está morando agora: aponta para o céu bem azul. A sonhadora pergunta se ele está bem, e ele diz que sim, muito melhor do que aqui. Depois transforma-se num pássaro verde, e, a seguir, num azul, e sai voando. A sonhadora acorda tranqüila.
O relato deste sonho veio acompanhado de associações feitas espontaneamente. A sonhadora disse ter sentido um grande alívio após o sonho, junto com uma certeza interna de que o marido está bem. Sentiu que um aperto fora tirado de seu coração, e que estava mais alegre. Poucas semanas depois relatou que estava conseguindo “juntar as letras” nas aulas que sua filha lhe dava.
Como já foi dito, as condições para que os sonhos fossem trabalhados mais profundamente deixavam a desejar. Assim, minha proposta foi a de acompanharmos as associações da sonhadora, o que sentia durante o sonho e, a seguir, ouvir a reação do grupo. Eu reagia emocionalmente, apontando com veemência a beleza e a profundidade das imagens do sonho, com o intuito de que percebessem a riqueza estética, única e significativa da dimensão onírica. Com o passar do tempo, elas passaram a fazer o mesmo. Na medida do possível, eu tentava fazer uma ou outra pontuação, estimulando o desenvolvimento dos recursos de cada personalidade. Assim, por exemplo, no sonho relatado, enfatizei o caráter libertador e a beleza do símbolo do pássaro, que estavam em sintonia com a vivência da sonhadora.
Dinâmica do Grupo
Desde seu início, o grupo mostrou-se bastante aberto e receptivo, não apenas para minhas intervenções, mas para ouvir e acolher cada relato, cada exposição de cada uma das participantes. O clima instaurado e a presença de um sentimento de empatia, solidariedade e compaixão favoreceram que aquelas mulheres compartilhassem suas dificuldades e angústias. Os sonhos foram instrumentos preciosos para abrir caminhos rumo à profundidade de cada pessoa. A partir deles, foram expostos, às vezes pela primeira vez, sofrimentos terríveis, como o de uma senhora que relatou ter sempre sonhos muito agitados. Sempre alguém a perseguia. O ônibus fazia uma curva e quase caía, colocavam fogo em sua casa (isso ocorrera concretamente), ou chegava na casa de sua mãe e não conseguia entrar porque tinha um muro. Esses sonhos vinham acompanhados de muita angústia. Falamos um pouco sobre a barreira imposta pelo muro, porque este sonho era o mais atual. Então ela disse: “será que estou fugindo do assassino do meu filho?” E contou que, numa briga, o filho havia sido assassinado por um rapaz que trabalhava com ela. Não quis processá-lo, o que foi feito pela promotoria. “Meu advogado é Deus”. Quando houve o julgamento, não se importou em ficar cara a cara com o rapaz. “Meu marido e minha filha pediram para tirar ele de lá. O juiz perguntou para mim e eu falei ‘tanto faz’. Para mim dava na mesma. Não senti nada, só pena dele. Criatura infeliz. Não senti nem aquela coisa aqui, sabe?” E fez um gesto com a mão fechada junto ao coração, indicando um aperto. Nesse momento, chorou pela primeira vez. Contou, então, que nunca tinha chorado antes porque tivera que ser forte, já que seu marido, sua filha e sua nora não agüentaram. “Um correu, outro desmaiou…”. Fora ela quem tomara todas as providências, inclusive a autorização para desligar os aparelhos que mantinham seu filho vivo artificialmente, e para que seus órgãos fossem doados.
Ao longo dos nossos encontros, fui percebendo que, paulatinamente e cada vez mais, os sonhos adquiriam importância e mereciam atenção por parte daquelas pessoas. Acontecia, às vezes, que o tema emergente era o relato de experiências ou fatos, que eram também acolhidos e elaborados, mas com freqüência alguém perguntava se ninguém tinha sonho para contar.
Eu orientava sempre o grupo para que cada participante percebesse suas reações emocionais e associações aos sonhos e experiências relatadas. Ocorreu, em algumas ocasiões, uma sincronicidade em relação aos temas dos sonhos. Várias sonhadoras traziam sonhos com o mesmo motivo central, que recebia associações de todo o grupo e, por conseguinte, era amplificado também como símbolo do Self Grupal. Dentre os motivos centrais, arquetípicos e recorrentes, surgiram, por exemplo, a criança, o caminho, o medo e a água.
Alguns Sonhos
Não é minha intenção demonstrar a importância da elaboração dos sonhos e a compreensão dos seus significados, porque isto é sabido por todos aqui presentes. O que pretendo mostrar, com a série de sonhos que relatarei a seguir, é como o processo revelado por eles foi acompanhado e compreendido mesmo num setting tão adverso.
A sonhadora tem 53 anos, é casada e não teve filhos. Diz que sempre foi muito reprimida pela família, sobretudo pela mãe, que era muito exigente. Depois de casada, o papel repressor passou a ser desempenhado pelo marido. Sente que foi muito difícil crescer. Nunca era chamada por seu nome, mas somente por seu diminutivo. Não podia expressar sua vontade. Participou assiduamente de nossos encontros. Tímida, falava pouco, mas foi se soltando cada vez mais, trazendo vários sonhos. Contou que, quando criança morou na roça, trabalhando na lavoura desde menina. Nessa época teve alguns sonhos recorrentes. Num deles, um rolo compressor ameaçava passar por cima dela, e ela acordava assustada. Num outro, que a acompanhou até a vida adulta, estava em sua casa de infância. Começava a escurecer e ela tentava acender as luzes, mas havia ameaça de incêndio, pois a instalação elétrica era muito antiga. Então, permanecia no escuro. Anos mais tarde, depois de haver por várias vezes tido este sonho com o mesmo desfecho, seu pai apareceu e disse que agora as luzes podiam ser acesas, porque a casa passara por uma reforma e não havia mais perigo.
Esta pessoa trouxe para o grupo outros sonhos, com intervalos de alguns meses:
- Estava andando com sua mãe e uma irmã pelo sítio onde passara sua infância. Ambas continuaram andando, mas a sonhadora parou junto a uma árvore cheia de frutos de diferentes espécies. Foi colhê-los, mas percebeu que estavam passados. Reparou, então, que estava ficando para trás porque queria pegar coisas velhas, passadas, que já não serviam mais.
- Estava numa fábrica de bolsas. Uma ficou sobrando. Depois de perguntar quem era o dono da bolsa, e não aparecendo ninguém, porque era uma sobra de produção, a sonhadora ficou com ela. Mais tarde, chegou uma moça que quis ficar com a bolsa, mas a sonhadora disse que a havia visto primeiro, e que não a entregaria. Saiu deste lugar, mas perguntou-se se não deveria ter deixado a bolsa com a outra moça, que talvez precisasse mais do que ela própria. Sentiu-se culpada. Ao acordar, embora ainda um pouco culpada, já que habitualmente se coloca em segundo plano, sentiu-se bem por ter ficado com a bolsa.
- A sonhadora estava subindo uma rua bastante íngreme. Começou a vir uma enxurrada forte. Viu que não teria onde se abrigar e pensou que, se tentasse resistir, a água a derrubaria, porque vinha com muita força. Decidiu, então, entregar-se, e foi como que surfando ladeira abaixo. Quando acabou a ladeira, a água desapareceu e ela viu que não se machucara. Em seus comentários disse que normalmente se sente envergonhada quando atrai a atenção de alguém, mas que, no sonho, vira um conhecido e ficara bem solta, como que dançando sobre a água.
Com o passar do tempo, foi se afirmando, demonstrando a aquisição progressiva de maior confiança em si mesma, mais independência, coragem de lutar, auto-afirmação e iniciativa, como se o simples relato e a pequena elaboração de seus sonhos tivessem tido um grande efeito transformador na sua personalidade.
Outra senhora, de 58 anos, também trouxe um sonho recorrente, que a acompanhava desde a infância. A sonhadora caminhava por uma estrada de terra, e via ao longe “uma parede, um muro de pedras, uma montanha”. Continuava se aproximando até que, quando estava bem perto do muro, as pedras começavam a cair. Ela saía correndo, voltando sempre pelo caminho por onde havia vindo. As pedras começavam a rolar. A sonhadora caía, e temia ser atingida. Uma pedra chegava até bem perto dela. Acordava assustada.
Trabalhamos suas associações, as montanhas de pedra que teve que enfrentar durante a vida, o medo de ser soterrada por elas, o medo de não ser forte o bastante para superar tantas dificuldades. Na semana seguinte, relatou que há dez anos ia à Aparecida do Norte, mas que nunca subira no morro onde está o Cruzeiro, porque sempre achara que aquilo não era para ela. No entanto, sempre tivera muita vontade de fazê-lo. No último final de semana havia voltado lá, só que desta vez tomara coragem e subira, o que a deixou realizada, “enlevada”. “A vista de lá é uma beleza! Acho que foi uma pedra que eu tirei da montanha!”, acrescentou.
Esta mesma mulher trouxe um outro sonho, no qual é chamada às pressas para acudir um homem que estava sendo violentamente agredido por um grupo de pessoas. Quando chega até ele, vê que este homem era Cristo. Chama a atenção dos agressores, dizendo se eles não viam que estavam crucificando Cristo pela segunda vez. Ao acordar, pergunta a si mesma, quem ela estava crucificando. Mostrando uma grande capacidade de elaboração simbólica, revê, a partir deste sonho, a relação com uma de suas filhas, a quem crucificava, fazendo com ela o mesmo que vivenciara com sua mãe – uma super-exigência, acompanhada de desqualificações constantes. Conta que sofrera muito no parto desta filha, e que sempre dera a ela um tratamento diferente daquele dado aos outros dois filhos (um rapaz e outra moça), agredindo-a mais, tendo menos paciência, implicando mesmo. Acrescenta que é muito mais fácil a gente ver no outro os defeitos, do que perceber que os defeitos são nossos. E que era preciso que cada um fosse capaz de perceber seus erros, suas culpas, e não jogar para o outro. Posteriormente relatou que a relação com a filha melhorara muito, e diz que a jovem lhe perguntara: “mãe, o que deu na senhora, que está tão diferente?”.
Considerações Finais
O trabalho com os sonhos abriu para as participantes do grupo a riqueza, a beleza e a importância da dimensão simbólica neles contida. Muitas passaram a considerá-los algo importante e a dar-lhes maior atenção, abrindo-se para seus ensinamentos, mostrando-se dispostas a vivenciá-los e respeitá-los como portadores de significados e fonte de sabedoria. Ao valorizarem os próprios sonhos, perceberam-se capazes de ter uma identidade e uma vida importantes, até então desconhecidas e desprezadas. Aumentaram sua auto-estima, o respeito e a consideração por si próprias e por suas histórias de vida, o que propiciou algum resgate do seu potencial existencial.
Tendo os sonhos como fio condutor e auxiliadas pelo olhar do outro, boa parte dessas mulheres pôde elaborar melhor lutos, relações parentais e familiares. Houve também uma certa elaboração de conteúdos ligados a preconceitos raciais, sociais e de gênero, já que muitas das participantes sofrem grandes discriminações por parte da classe dominante, por serem mulheres, negras e pobres. Descobriram e resgataram, com seus sonhos, um pouco da sua importância como pessoa, como membro de uma família e de uma comunidade. Em determinado momento propuseram e passaram a organizar, por conta própria, um grupo que denominaram Gupo de Troca de Experiências, no qual se dispunham a ensinar, umas às outras, o que sabiam de, por exemplo, uso de plantas medicinais, receitas culinárias com melhor aproveitamento dos alimentos, bordado, pintura em tecido, tricot e crochet. Vemos, portanto, a possibilidade de conseqüências extraordinárias emergirem dentro de um trabalho tão restrito e pouco ortodoxo, mas que pôde beneficiar pessoas que dificilmente teriam acesso a um atendimento dedicado ao autoconhecimento.
Observei, também, diferenças gritantes entre o funcionamento desta população e daquela com quem trabalho no consultório, especialmente no que concerne à abertura para a criatividade da Função Transcendente, descrita por Jung. É muito difícil perceber o quanto estamos impregnados de elementos culturais quando permanecemos entre nossos pares. Pelas diferenças podemos nos conhecer talvez mais do que pelas semelhanças. Como professora e terapeuta em consultório particular, estou acostumada com um universo de pessoas com certa formação acadêmica, a maior parte, inclusive, tendo curso superior. Muitas destas pessoas são bastante cultas e, em sintonia com nossa tradição ocidental, que alçou o pensamento a uma posição privilegiada, têm um raciocínio lógico bem desenvolvido, são bastante críticas e capazes de formulações muito inteligentes, embora às vezes em detrimento de vivências emocionais e de experiências de cunho mais intuitivo e vinculadas ao sentimento. Ao ter um contato mais próximo com pessoas com pouco ou nenhum estudo, algumas não alfabetizadas, pude perceber o quanto nossa razão é usada defensivamente, criando argumentos, justificativas, compondo com freqüência uma Persona escorada no intelecto e na erudição, que serve para esconder a Sombra, encobrir dificuldades emocionais e criar uma distância entre as palavras bem articuladas e as vivências, entre a teoria e a ação prática, entre a compreensão intelectual e a apreensão emocional, entre a racionalização e a elaboração.
Com uma Persona mais esgarçada e menos apoiada em valores superficiais de status e de consumo, acostumadas a lutarem pela sobrevivência, com a vida e a morte presentes lado a lado, convivendo intimamente com a Sombra, reconhecendo mais facilmente a presença efetiva, e não apenas filosófica, da dialética entre o Bem e o Mal na personalidade, sem o viés do pensamento lógico unilateral (posição polarizada da Consciência), essas mulheres aproximaram-se de sua essência de modo mais espontâneo e natural do que o faz a classe burguesa, mais aferrada ao materialismo, à Persona, ao poder ou ao intelecto. Observei que, ao fazerem as associações com os sonhos, as mulheres do grupo não apenas expunham suas vivências, seus sentimentos, suas reações, de modo direto e aberto, transmitindo a sensação de que aquilo fluía mais naturalmente, sem os obstáculos impostos pela racionalidade defensiva, mas passavam rapidamente a aplicar em suas vidas os frutos de suas elaborações.
Chamo a atenção ainda para uma das grandes distorções que temos como analistas, ao correlacionarmos o pagamento ao empenho do analisando. Encobrindo e justificando nossa falta de solidariedade, e até mesmo nossa ganância, convencionamos, sem saber por que, que a análise não traz progresso significativo e, portanto, não é viável para determinada classe social, mais ignorante, e supostamente com menor capacidade de compreensão e abstração. Em nosso elitismo, continuamos a trabalhar em prol de nossa própria classe social, contribuindo deste modo para a perpetuação do abismo estabelecido entre a Casa Grande e a Senzala. Se, como disse James Hillmann, depois de cem anos de Psicanálise o mundo continua tal e qual, querendo com isso dizer que a análise não tem qualquer valor social, precisamos lembrar que o problema não é da análise, mas dos analistas que permaneceram olhando apenas para seus iguais, sem atender ao chamado profundo das classes carentes, mola propulsora da transformação do Self Cultural.
Contrariamente ao nosso preconceito, minha experiência mostrou que a capacidade de elaboração simbólica independe da erudição e do conhecimento intelectual, mas vincula-se à sensibilidade, intuição e inteligência. O Instinto de Individuação, valendo-se dos símbolos para fazer-se atuante e impulsionar o processo de desenvolvimento, está sempre presente, demonstrando o aspecto arquetípico democrático existente na Psique.
Ao finalizar a redação deste trabalho veio-me à lembrança uma expressão muito utilizada nas comunidades eclesiais de base: “ser fermento na massa”. Acredito que, graças ao empenho, à solidariedade, à força, à disponibilidade, à sensibilidade das mulheres com quem tive o privilégio de trabalhar, o pouco que pude oferecer foi transformado em muito.
Esta apresentação terá cumprido sua finalidade se incentivar os colegas que tenham um mínimo laivo de consciência social a doarem uma pequena parte de seu tempo para auxiliar as comunidades carentes na elaboração de seus símbolos.
**Trabalho apresentado no III Congresso Latino Americano de Psicologia Junguiana. Salvador, 2003. Publicado na Revista Jung & Corpo nº 12, 2012.
Que incrível!!! Gratidão pela disponibilidade do conteúdo. Foi muito importante pra mim como paciente e como estudante de psicologia.
Que bom que gostou Sirley.
Gratidão pelo feedback!