Sempre que sou convidada a escrever sobre algum tema que tem como base a teoria de Jung, como a psique, busco na realidade externa, para além das questões teóricas que cercam seus fundamentos, algo que possa colaborar para o entendimento de algumas situações vividas no cotidiano e para as quais nem sempre nos damos conta. Por que o tema afeto é tão importante? O desafio deste artigo é buscar o entendimento de como o afeto nos afeta e, tentar responder, afinal, porque o afeto nos afeta? Qual a sua estrutura e de que forma é possível melhor compreender para que a vida seja um pouco mais consciente e com menos atropelos. Acredito que possa ser visto como uma utopia tal afirmação. De fato, é complexo, mas, não impossível.
Uma fantasia, para iniciarmos a construção deste tema é o filme Coringa. O comediante falido Arthur Fleck encontra violentos bandidos pelas ruas de Gotham City. Desconsiderado pela sociedade, Fleck começa a ficar louco e se transforma no criminoso conhecido como Coringa.
O interessante da obra é como essa construção se apresenta. De que forma Arthur se transforma no Coringa. Quais as situações vividas ao longo da vida que o tornou o ser que é.
Longe de ser, neste momento, um “spoiler” para quem ainda não viu a película, a estória fala de situações deste inconsciente em ação e de que forma é possível despertar afetos escondidos e não conscientes que fazem um tremendo de um estrago. O personagem também apresenta transtorno psiquiátrico, provocado pelas circunstâncias violentas da vida, mas, fica claro o jogo do consciente e inconsciente o tempo todo. Ao final, será considerada uma análise que possa ilustrar o desafio deste tema.
FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA ANALÍTICA
Em sua obra Fundamentos da Psicologia Analítica, Jung diz que “o mundo da consciência caracteriza-se sobremaneira por certa estreiteza; ele pode apreender poucos dados simultâneos num dado momento. Enquanto isso tudo o mais é inconsciente”.
A mente registra eventos diários. Situações que são de ordens diversas. Ora com gosto amargo, ora com momentos preenchidos com intenso prazer. No entanto, não é valorizado acreditando-se que passam despercebidos.
Há de se concordar que uma das razões para esta falta de atenção é a própria rotina frenética internalizada e que é parte de uma cultura social esperada. Além disso o autoconhecimento por intermédio da psicoterapia ainda não é valorizado como se de deve, tornando o Ser cada vez mais distante dele mesmo.
Outro ponto igualmente interessante e que vem ao encontro desta abordagem é o que a Psicologia evolucionista diz e que, segundo Wright (2018, p.15) “o cérebro humano foi projetado – pela seleção natural – para nos ludibriar e até mesmo nos escravizar e também nos iludir”.
Sobre este ponto citado por Wright, Jung (1972, p.24) diz:
“A consciência é, sobretudo, o produto da percepção e orientação no mundo externo, que provavelmente se localiza no cérebro e sua origem seria ectodérmica. No tempo de nossos ancestrais essa mesma consciência derivaria de um relacionamento sensorial da pele com o mundo exterior. É bem possível que a consciência derivada dessa localização cerebral retenha tais qualidades de sensação e orientação”.
E O QUE SÃO OS AFETOS?
Afetos são todas as mudanças que, de alguma forma, interferem na dinâmica da energia psíquica e energia vital. Quando somos afetados por situações que ainda não entramos em contato e que nem sequer temos consciência os afetos nos “possuem”, disparando uma sequência de estímulos que ativam nossa dimensão neurofisiológica, afetando o cérebro, processando todas as informações recebidas. Os afetos, quando emergem na psique “interrompem” a tranquila circulação de representações egocêntricas e levam o complexo do EU a perder a própria estabilidade.
O complexo é uma estrutura psíquica mínima dotada de forte carga afetiva que liga entre si representações, pensamentos e lembranças. No seu núcleo tem um arquétipo.
Os primeiros complexos a se fundar é o complexo materno e paterno.
Para Jung (2013, p.43) um complexo afetivo é a imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga emocional e, além disso, incompatível com as disposições ou atitude habitual da consciência.
É quando, por exemplo, alguém diz que você está agindo diferente do habitual, indagando “o que aconteceu?”. Pode ser também na brincadeira quando te dizem “você estava com o Diabo no corpo! Não te reconheci”.
E são os afetos que disparam os complexos.
Segundo Jung (2013, p.51) “todos os teóricos que se dedicam a este campo da psicologia correm o mesmo perigo, pois tratam de alguma coisa que afeta o que existe de indomado no homem, o numinoso, para empregar a notável expressão de Otto. A liberdade do eu cessa onde começa a esfera dos complexos, pois estes são potências psíquicas cuja natureza mais profunda ainda não foi alcançada”.
O que devemos lembrar sempre é que os complexos autônomos se contam entre os fenômenos normais da vida e determinam a estrutura da psique inconsciente.
Um ponto interessante para ser analisado afinal, existe em nós, uma parte de ancestralidade, onde algumas das nossas ações acontecem naturalmente e de forma automática, garantindo a sobrevivência.
Voltando ao inconsciente, Jung na sua obra Natureza da psique, (2013, pg. 105) diz:
“Quanto mais uma pessoa é inconsciente, tanto mais ela se conforma aos cânones do comportamento psíquico. Mas, quanto mais ela toma consciência de sua individualidade, tanto mais acentuada se torna sua diferença em relação a outros indivíduos e tanto menos corresponderá ela à expectativa comum. Além disso, suas reações se tornam muito menos previsíveis”.
O inconsciente, não é isto ou aquilo, mas o desconhecimento do que nos afeta imediatamente. É sabido que a consciência tem como cerne e centro o EGO – palavra latina que significa EU.
O EGO é à entrada da psique, cujo espaço interior é imenso. O EGO é o ponto focal de referência da consciência, é seu centro crítico, a estrutura que seleciona o conteúdo do qual a esfera consciente se ocupa. É o que seleciona o que permanece na consciência e o que vai para o inconsciente. É o agente organizador da experiência psíquica.
Jung ainda diz (2013, p.48) “Os complexos não são de totalmente de natureza mórbida, mas manifestações vitais próprias da psique, seja esta diferenciada ou primitiva. Por isso encontramos traços de inegáveis em todos os povos e em todas as épocas”.
Além disso, ele ainda afirma (2013, p.49) “Os complexos são de tal modo desagradáveis, que ninguém, em sã razão, deixa-se convencer que as forças instintivas que alimentam os complexos podem conter qualquer coisa de proveitoso”.
É por isso que o processo terapêutico proposta pela psicologia profunda é tão importante.
A PERSONA CORINGA
Arthur teve, na sua jornada, uma série de eventos que o tornou o Coringa. Durante o filme existe a atuação de vários complexos, que são acionados pelos afetos presentes em seu inconsciente e que foram “colecionados” ao longo da vida.
Uma vida reforçada pela dor, miséria e falta de cuidados básicos não produz um EGO fortalecido e saudável, muito pelo contrário.
Jung diz que (2013, p.49) “apesar da esmagadora abundância de testemunhos que nos mostram a universalidade dos complexos na psique, as pessoas têm repugnância em considera-los como manifestações normais da vida”.
Não olhar para isso é não enfrentar a sua grandeza e importância. Não compreender este ponto é não colaborar para o desenvolvimento dos nossos pacientes.
Frente à fantasia que poderia ser um retrato de uma realidade. É só olharmos os noticiários para concordarmos com isso; é importante e necessário compreendermos a importância desta teoria.
Tem uma frase de Jung que diz muito sobre isso que é: “até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir a sua vida e você vai chama-lo de destino”.
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Bibliografia
JUNG, C. G. A Natureza da Psique. In: Obras Completas. Rio de Janeiro, 1984. V.8
JUNG, C.G. Fundamentos de Psicologia Analítica – as conferências de tavistock. São Paulo: Ed. Vozes, 1972.
Wright, Robert. Por que o budismo funciona. Rio de Janeiro: Sextante, 2018.
Patrícia Razza
Psicóloga clínica e pedagoga.
patrícia.razza@gmail.com
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