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A Repetição pode ser Criativa e Trazer o Novo no Mesmo

O texto traz a ideia da repetição contendo uma possível transformação, a depender do olhar. O deus Hermes, expressão do movimento, e o mortal Sísifo, figura mítica que engana a morte e exerce uma ação repetitiva sem sentido, são lembrados como manifestações diferentes do movimento psíquico.

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A Pedra

Manoel de Barros

Pedra sendo
Eu tenho gosto de jazer no chão.
Só privo com lagarto e borboletas.
Certas conchas se abrigam em mim.
De meus interstícios crescem musgos.
Passarinhos me usam para afiar seus bicos.
Às vezes uma garça me ocupa de dia.
Fico louvoso.
Há outros privilégios de ser pedra:
a – Eu irrito o silêncio dos insetos.
b – Sou batido de luar nas solitudes.
c – Tomo banho de orvalho de manhã.
d – E o sol me cumprimenta por primeiro.

Repetir

Falemos um pouco da repetição. Quando focamos esse fenômeno, podemos notar o quanto ele está presente, e o quanto pode ser criativo e imprescindível à vida. De início destacamos o ritmo, manifestação encontrada nas realidades mais primordiais da existência. Os batimentos cardíacos acontecem repetida e incansavelmente para que possamos existir.

“O ritmo pode ser a base para uma ampla gama de mudanças transformadoras” Jung (1982, V, § 204).

Na mitologia, Zeus repete o temor de Cronos, e este o de Urano, em serem suplantados por seus filhos. Há aí a repetição, e também a transformação: cada geração trará algo novo consigo. O sol repete o mesmo caminho todos os dias. As crianças repetem os gestos dos pais na imitação, e os animais reproduzem por imprinting os movimentos de seus progenitores.

As estórias contadas às crianças são repetidas ad infinitum, e só aprendemos “de coeur” a tabuada através de muitas, e muitas repetições. Há que se repetir inúmeras vezes um poema para memorizá-lo e declamá-lo; na análise repete-se nos sonhos, repete-se na transferência, repete-se na frequência das sessões, repetem-se as falas; na dança repetem-se os passos até o corpo encarnar o movimento coreografado; na música repetem-se as posições e os acordes até a melodia se firmar.

Repetem-se os dias, os meses, os anos, repetem-se as luas, que crescem, enchem e se esvaziam, e assim fazem subir e descer as marés repetidamente. Repetem-se as estações, a moda, as encenações nos teatros, as comemorações, as festas, a saída do ano velho para a entrada do ano novo; repetem-se as promessas, as esperanças, os rituais de passagem, as viagens noturnas; repete-se, repete-se, repete-se…O ser humano constrói e se constrói a partir da repetição.

REPETIÇÃO

 

Em “O Mito do Eterno Retorno” (1969), Mircea Eliade dimensiona  a importância da repetição da seguinte forma:

“Um objeto ou só uma ação se tornam reais na medida em que imitam ou repetem um arquétipo. Assim, a realidade só é atingida pela repetição ou pela participação” (p.49)

Eliade foca o “mecanismo da transformação do homem em arquétipo através da repetição.” (p.51) (grifos do autor). Com isso aponta para o paradoxo do homem só ser ele mesmo quando também se reconhece enquanto todos os homens, e repete ontologicamente a história da humanidade.

A ideia da repetição inevitavelmente nos traz a figura de Sísifo. Foi destinado por Zeus a rolar enorme pedra montanha acima. Antes, porém, de alcançar o cume, a pedra em desequilíbrio despenca morro abaixo, obrigando-o a recomeçar seu esforço. Sua falta foi ter ludibriado a morte, e dessa forma ter se pretendido imortal.

Novamente, a já tão citada hýbris –a desmedida, a arrogância, a pretensão de ser além do que se é-, passível de reações na concepção divina. Repetidamente, a presença da morte como símbolo de transformação. Sísifo não pôde deixar-se morrer. Podemos pensar nesse momento, um Sísifo inserido numa dinâmica patriarcal, com características defensivas.

A ideia de uma repetição entediante liga-se ao binômio “trabalho de Sísifo”, e  só se investe dessa característica por não aceitar a natureza da repetição, inclusive da vida e da morte. Sísifo encarna, assim,  a repetição neurótica e patológica.

Mito de Sisifo

Verena Kast (1997), em seu livro “Sísifo – A Mesma Pedra-Um Novo Caminho” traz a questão da repetição para ser refletida. Fala que o “esforço só se tornou para ele um trabalho de Sísifo quando estava desanimado ou pretendia demais.” (p.25), ou seja, quando da ausência de Eros ou na presença da inflação. Aborda a tensão presente no mito, entre a necessidade da repetição em contradição com o fato da vida precisar se modificar. “Na repetição fixa-se também a vida (…)” (p.23).

Kast aponta para o quanto a fixação pode ser algo criativo e necessário, um fincar raízes, e quanto pode ser restrição ao crescimento. A autora nos convida a ler o mito com outro olhar que não o habitual. Sai, portanto, da imagem do mito e a interpreta. Põe foco em determinados aspectos, tentando compreender de um modo diverso. Quando avalia o ato contínuo de Sísifo, busca um sentido, como se traduzisse uma possível renúncia do herói a fantasias e expectativas, sem contudo desistir. Não vamos entrar no mérito dessa proposta de leitura do mito mas sim,  permaneçamos na imagem, atentando para algumas coincidências.

Hermes: movimento e transformação

Se Sísifo rola uma pedra, podemos, através de uma livre imagem texto Sylvia melloassociação com esse símbolo, chegar ao deus olímpico cujo mito compõe com ele uma relação íntima e significativa.  Hermas é o nome dado a uma pilha de pedras, ou um pilar de pedra com falo ereto, que delimita territórios e simboliza Hermes, o deus astuto, viajante, condutor de almas, deus dos caminhos, vinculador, comerciante, mensageiro, e também ladrão, traquinas, larápio, brincalhão, entre outros atributos.

A pedra de Hermes, Mercúrio para os alquimistas, é resultado da união dos contrários, da complexio oppositorum, de onde sairá a energia vital; é o ouro não vulgar. Simboliza o real e o imutável, e ao mesmo tempo contém o novo. Sísifo parece ter algumas características encontradas também em Hermes. Como  exemplo, lembramos sua astúcia em ludibriar a morte por duas vezes, talvez por não aceitar a transitoriedade.

A sua capacidade de enganar os deuses o faz especial, e estreita seu parentesco com o traquinas mensageiro dos mundos, seu bisavô. Mas a sua incapacidade de aceitação do passageiro e seu desejo de imortalidade a qualquer custo, afasta-o definitivamente do deus olímpico. A questão é o uso inadequado que faz de seu potencial criativo. Sua arrogância selou seu destino com a repetição enquanto impossibilidade de transformação. Aparentemente há movimento, mas desprovido de sentido. É a própria imagem da neurose.

No plano coletivo, Sísifo foi capaz de obter algo importante e significativo quando trocou informações sobre o rapto da filha de Ásopo, cometido por Zeus, por uma fonte eterna de água para a árida acrópole de Corinto. Vemos como a questão do eterno e da recusa da morte se repete.

Simbolicamente, como salienta Kast, ele está comprometido com a vitalidade mais do que com a obediência. Diríamos, certamente, surgir um lampejo do novo na sua capacidade de desafiar o poder instituído. Esse é um atributo bastante hermético, nascido também da hermética faculdade da troca e da negociação. Esse comportamento de Sísifo enriquece o coletivo. Entretanto, o trapaceador da morte peca ao  usar seu poder ardiloso de persuasão em benefício próprio, e tirar vantagens de sua astúcia em proveito de si mesmo.

O que faz de Sísifo, um Sísifo e não um Hermes? Não há intenção nesta pergunta em transformar um no outro; mesmo porque cada um tem uma história a ser contada, e aí reside a riqueza. O convite é, antes, para olhar atentamente as imagens por ambos propostas. A qualidade do movimento em Hermes é totalmente diferente. Hermes traz justamente a capacidade de desprender-se do conquistado, confiante em sua própria capacidade criadora. Não teme a transitoriedade. É puro movimento. Seu chapéu alado e suas velozes sandálias o fazem transitar pelos três mundos, o Olimpo, a Terra e os Ínferos.

Tendo a pedra como seu símbolo mais emblemático, traz a imagem dos limites, não como algo aprisionador e estanque, mas como um sinalizador. A comunicação entre as instâncias, a viagem, o fluxo, a agilidade são suas qualidades. Aceita a morte sem medo, pois é capaz de compreendê-la enquanto símbolo, o que faz Zeus consagrá-lo como o único deus a quem é permitido conduzir as almas aos Ínferos. Somente quem tem grande familiaridade com tais dimensões poderia realizar tarefa tão significativa. Aceita a morte e a transformação nela contida.

Portanto, há que se buscar Hermes nos movimentos da vida, e encontrar a transformação na repetição, o novo no mesmo.

No Meio Do Caminho

Carlos Drummond de Andrade

No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra

REFERÊNCIAS

ANDRADE, C. D. (1993) Antologia Poética. Rio de Janeiro: Record, 1998.

BARROS, M. de (2001) Tratado Geral Das Grandezas Do Ínfimo. Rio de                     Janeiro:Record, 2001.

JUNG, C. G. (1912) Símbolos de transformación. Buenos Aires: Paidós,                       1982.

KAST, V. (1986) Sísifo, A Mesma Pedra-Um Novo Caminho. São Paulo:                      Cultrix, 1997.

ELIADE, M. (1969) O Mito do Eterno Retorno – Arquétipos e Repetição                  São Paulo: Edições 70, 1981.

2 COMENTÁRIOS

  1. Texto profundo e escrito com delicadeza. Faz pensar sobre a repetição na subida dos degraus. Os passos se repetem e se elevam ao mesmo tempo. De forma circular e crescente. A espiral da transformação é trilhada por constância disfarçada de monotonia.

    • Olá Regina, obrigada pelo comentário! Adorei a síntese… ” A espiral da transformação é trilhada por constância disfarçada de monotonia” perfeito! abraços da nossa equipe!

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