“…Deus me proteja de mim
e da maldade de gente boa.
Da bondade da pessoa ruim
Deus me governe e guarde ilumine e zele assim..”
Deus me proteja
Chico César
Ao pensar em Sombra a primeira coisa que associo é com a adega na casa dos meus avós. Um porão escuro, onde havia ratos, aranhas e cobras. Mas era ali que meu avô guardava seus preciosos vinhos portugueses. Quando pequena, eu sentia pavor só de olhar a porta do porão! Não entraria lá sozinha por nada. No entanto, o lugar causava-me fascínio. É fácil entender o motivo, já pressentia que aquilo era parecido com uma “região” existente em mim mesma.
Dentro de cada um de nós existem coisas escuras que nos dão pavor e ao mesmo tempo nos atraem. Jung disse que a humanidade só vai melhorar quando cada pessoa reconhecer os entulhos, o torto, o feio, o mau que existe dentro de si. Assim é possível parar de atirar nas outras pessoas, trastes acumulados em nossos porões. Não é fácil! Dentro do nosso ser não passa caminhão recolhendo lixo. Tudo o que a gente não gosta em nós mesmos, não aceitamos, temos vergonha, somente pode ser reciclado e transformado. É preciso o fogo do trabalho suado e da persistência; o balsamo da esperança e a benção do amor para acontecer este tipo de alquimia. Transformar lixo em luz! Coisa parecida com o que o artista plástico Vik Muniz faz ao utilizar lixo para realizar obras de arte impactantes.
Pessoas que trancam sua Sombra e jogam a chave fora parecem educadíssimas e ao mesmo tempo insuportáveis. Um exemplo é Bree Van De Kamp, personagem do seriado Desperate Housewives. Dona de casa competentíssima, “elegantérrima”, perfeccionista em tudo que faz. Nas relações pessoais o controle obviamente não dá certo e a coisa desanda. Foi capaz de envenenar um homem e continuar passando por mulher perfeita.
Negar desta forma nossos “lixos” é perigoso e limitador. Para viver de forma profunda e ampla é preciso conviver com contradições. Apenas as pessoas que suportam a própria Sombra são capazes de acolher os elementos necessários aos processos criativos, pois possuem inteireza suficiente para abarcar a complexidade da alma.
Mihaly Csikszentmihalyi, um pesquisador de quem gosto muito, diz que a característica mais marcante do sujeito criativo é justamente esta complexidade para transitar por ambiguidades e pólos opostos. Neste sentido trago mais dois reforços: a sábia afirmação de Jung: “É muito melhor ser inteiro do que ser bom.” E a maravilhosa dica de Fernando Pessoa:
“Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive”
Ainda criança eu tinha esta intuição: se quisesse provar o vinho da criatividade teria que enfrentar a toca dos monstros. Era muito “inventadeira de moda” durante o dia e medrosa à noite, quando nosso contato com o Inconsciente se acentua e a Sombra coloca mais suas “manguinhas de fora”.
Sombra e luz
Por volta dos meus cinco anos, uma vez sonhei com um lobo.
Eu estava entrando no grande quarto de minha avó quando…
vi o bicho em um vão, entre o guarda-roupa e a parede.
Ele em pé, rindo para mim.
Se o lobo estivesse no meio do quarto não me assustaria tanto.
Eu tentei correr, tentei, e as pernas não me obedeciam.
Hoje sei que não havia lobo,
Eu encontrara o lado escondido de mim mesma.
Tantos anos se passaram e não mudei muito. Transito entre pólos aparentemente antagônicos e assim vou me ampliando, me passando a limpo.
Ora bruxa, ora gente!
Tenho um panelão próprio para cozinhar inveja.
Com ele cozinho as invejinhas e invejonas diárias.
São inofensivas se dou conta de digeri-las todas.
Perigoso é quando sobra inveja na panela,
de um dia para o outro, azedando, mofando, criando larvas.
Dai-me, Senhor, paciência e estômago pra aguentar e engolir tudinho essa comida gosmenta!
Preciso lavar diariamente o tacho, areá-lo com humildade até ver refletido no fundo dele o rosto de quem não é santa,
por isso mesmo humanamente simpática.
***
Mais um exemplo – inventado e muito verdadeiro – de como pelejo com essa tal de Sombra.
Doma
Por muito tempo, mês sim, outro também, sonhei com uma casa enorme e abandonada. Em outros tempos tenho certeza que foi um lugar lindo, rico e cheio de vida. Em cada sonho, me sentia cheia de saudades e ao mesmo tempo apavorada, só de imaginar o que poderia encontrar lá dentro. Até que, em uma madrugada, acordei assustada, depois de visitar a casa. Estiquei o braço para ver as horas e ao invés de encontrar meu despertador digital, meu abajur de luz dicróica, os meus bibelôs de estimação, passei a mão em muita poeira, e apalpei algo peludo parecido com aranha. Ai! E era aranha! Joguei aquele troço nojento longe! Percebi que estava dentro da tal residência antiga. Misteriosa! Intrigante! Aterrorizante! Quis gritar e não consegui! Estava petrificada de pavor! Devia ter muito bicho na casa! Ouvia os uivos dos monstros e adivinhava olhos brilhantes e garras se aproximando. Pareciam também que arrastavam correntes…
Não gosto nem de lembrar! Quando, com muito esforço consegui balbuciar minha oração preferida, senti o coração serenar. Então, no meio da escuridão vi uma chave dourada, como um vagalume de esperança indicando minha salvação: quanto mais eu sentia medo mais os bichos se enfureciam!
Precisava me livrar daquela situação terrível! Pensei que em primeiro lugar seria necessário entrar claridade, não há monstro que resista um bom banho de luz! Graças a Deus, amanhecia. Corri até a janela mais próxima, foi só dar um pequeno empurrão, estava podre e despencou. Uma maravilhosa nesga de sol dourado, borbulhando arco-íris, penetrou no quarto. Encorajada por essa primeira vitória, subi na janela, agarrei nos grossos galhos de flamboyant que se encostavam na casa e desci. No chão achei uma pedra pesada e buscando forças nem sei onde, com uma pontaria que nunca tive lancei-a na viga principal da construção. A pedra foi certeira! Enxerguei de relance mão semitransparente a guiando até atingir, em cheio, onde devia. O telhado ruiu fazendo um estrondo ensurdecedor!
Doeu ver desmoronar aquela velharia toda! Afinal me assombraram por tantos anos, já considerava um pavor amigo! Tossi muito com a poeira. Foi uma gritaria, um tropeço! Tive certeza que todos os monstros pulariam em cima de mim e me devorariam! Como sobrevivi, não sei! Quando a poeira baixou pude encarar os bichos de frente. Que coisa! Não eram tão feios quanto imaginei. De formas e tamanhos variados, alguns pareciam cansados, e outros tão inusitados que não pude evitar o riso. Conforme eu ria muitos diminuíam, faziam puf e desapareciam. Incrível! Confirmei a eficácia do feitiço Ridikkulus ensinado no Harry Potter!
Ainda sobraram muitos! Pensei em sair correndo, mas achei que correriam atrás de mim. Onde quer que eu fosse, acampariam ao meu lado e construiriam outra morada. Enquanto ainda examinava o que fazer, vi meu irmão aparecer a uma certa distância. Fiz sinal que precisava de socorro. Ele percebeu a situação de emergência e gritou: “O que os monstros comem?” Eu não sabia. O que será que mantinha aqueles bichos tão gordos? Meu irmão com muita firmeza continuou: “Pare de alimentá-los!”
Eu? Imagina! Tenho pavor desses monstros, não estava dando comida para eles não! Meu irmão de longe, insistia: “Quem criou estes monstros?” Ah! É verdade! Tive que admitir que eu mesma inventei cada unzinho deles. Eram todos criações e responsabilidades minhas! Fiquei horas parada, observando os bichões crescendo. Sem fazer nada, ou melhor, a única coisa que eu fazia era me encher de angustias. Mais uma descoberta: monstros se alimentam de angústias e tristezas! Precisava mudar aquele padrão viciado!
Afastei-me de costas, com cuidado até chegar perto de uma goiabeira carregada de frutas. Apanhei uma goiaba, sentei-me no chão e concentrei-me no sabor da fruta. Diante dessa atitude, metade dos bichos transformou-se em cinzas. Depressa peguei uma mangueira e joguei água para limpar toda a sujeira. Para minha surpresa os que sobraram foram se aproximando, molhando a ponta dos dedos peludos na água e logo estavam brincando e empurrando um ao outro para serem alvos do esguicho. Vi que poderia domesticá-los! Busquei sabonete dos bons e dei banho em todos. Fizeram fila e um por um se abaixavam e docilmente deixavam ser ensaboados. Ficaram quase cheirosos.
Hoje em dia já me acostumei com eles e eles comigo, me prestam pequenos favores – saem para comprar pão, pagam contas no banco, anotam recados quando eu saio… Descobri que adoram desenhar. É assim que eu os mantenho em razoável tranquilidade. Com muito papel e tinta. Não dou bobeira! Quando percebo que começam engordar, redobro os cuidados e trato com mais carinho e amor o meu próprio coração! Mantenho meu nariz na trilha da alegria.
***
Por trás deste relato fantasioso e seus possíveis questionamentos, encontra-se o ensinamento de Jung: “todo dom não manifesto vira uma maldição”. Essa triste verdade, pode ser percebida em tantos aspectos destrutivos da sociedade. Anthony Burgess, escritor inglês, autor de “Laranja Mecânica” afirma que “ A violência entre jovens é um aspecto de seus desejos de criar. Eles não sabem como usar a sua energia criativamente, então fazem o oposto e destroem.” Clarissa Pinkola Estes também lembra que a criatividade deve ser expressa diariamente ou acumula dentro da pessoa como fezes, e envenena.
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Tomara que esta história desperte perguntas como:
Que sentimento uma casa abandonada me traz?
Em minha alma existem espaços abandonados? Lugares sujos e escuros?
Quais dimensões do meu ser precisam de restauro?
Quais as consequências de não cuidar desses aspectos?
Como são os monstros que invadem lugares mal cuidados?
Quais são as minhas atitudes que alimentam monstros interiores?
Como emagrecê-los?
Como conviver com eles?
No que podem ser úteis? …
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As histórias e poemas cumprem seus papéis quando o leitor as customizam de acordo com referências da sua trajetória de vida. Ao ler algo que faz sentido, a alma abraça as palavras, cruza com suas verdades mais autênticas e pari novas compreensões de mundo. Que as criações literárias aqui oferecidas possam auxiliar mais um movimento no constante e árduo desafio apontado pelo mestre Jung – o confronto com a própria Sombra – e resultar no vislumbre de nossa própria luz.
Referências Bibliográficas:
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CSIKSZENTMIHALYI, M. Flow. New York, NY: Happer Perennial Modern Classics, 2008.
ESTÉS, C. P. The Creative Fire: myths and stories about the cycles of creativity. Audio
Cd. Sounds True, 1993.
JUNG, C. G. O Homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.
JUNG, C. G. Memórias Sonhos Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
JUNG, C. G. O Desenvolvimento da Personalidade. Petrópolis: Vozes, 1981.
JUNG, C. G. O Espírito na Arte e na Ciência. Petrópolis: Vozes, 1987.
MOORE, T. Noites Escuras da alma. Campinas: Verus, 2004.
OLIVEIRA, M. A. Terra de Formigueiro. Campinas: Papirus, 1997.
OLIVEIRA, M. A. & NAKANO, T. C. Criatividade e Resiliência na vida de Nise da Silveira. Dissertação de Mestrado. PUC Campinas, 2012.
ZWEIG, C. & ABRAMS, J. (orgs.) Ao Encontro da Sombra. São Paulo: Cultrix, 1991.